Em busca de alguma referência no baú cultural da humanidade que ilumine e ajude a suportar o descalabro civilizacional a que um mitômano conduziu o país, vou parar na misteriosa ilha em que Shakespeare ambientou “A Tempestade”.
Agrupada entre as comédias do dramaturgo inglês, a peça é divertida e, apesar de algumas zonas de sombra, tem final feliz. Mas não é por isso que vejo nela a capacidade de jogar luz sobre a tragédia brasileira —muito pelo contrário.
Já se disse que o mundo cabe inteiro em Shakespeare, que tudo o que é humano está lá. Pode ser, mas às vezes é preciso rearranjar a posição de algumas peças para que a metáfora faça sentido.
Apartada da realidade histórica, fundada em pura magia, a ilha de “A Tempestade” é governada por um feiticeiro inegavelmente superior, como ser humano, ao atual presidente do Brasil. Como traço comum entre os dois personagens, registre-se que Próspero já foi apontado como um dos grandes mentirosos da literatura.
Poderoso a ponto de fazer a realidade se curvar aos seus caprichos, o homem é falso como quem respira. Além de enganar os inimigos que faz naufragar na ilha, numa tempestade também de mentirinha, enrola o bom Ariel, espírito que mantém como escravo, prometendo libertá-lo e descumprindo repetidas vezes a promessa.
Próspero mente até para a pessoa que mais ama. Só depois que ela cresce revela sua verdadeira identidade à própria filha, a bela Miranda, que, tendo chegado à ilha aos três anos de idade, não se lembra de quase nada do passado distante.
Na vida pregressa do senhor da ilha da fantasia reside a explicação –e a justificativa moral– de seus ardis. Próspero é uma vítima de terrível injustiça em busca de sobrevivência e reparação.
Muitos anos antes, seu irmão Antônio lhe usurpou tudo, inclusive o título de duque de Milão. Lançado ao mar num bote com a filha pequena para morrer, o nobre caído em desgraça teve a sorte de ir parar numa ilha encantada que a morte de uma feiticeira má, Sycorax, tinha tornado vaga.
Como foi dito acima, tudo acaba bem. O irmão criminoso, um dos náufragos da tormenta do título, se arrepende de suas vilezas e é perdoado. Miranda e o filho do rei de Nápoles, que também estava no navio, se apaixonam e marcam o casamento.
Num maravilhoso monólogo final, Próspero, o grande senhor das mentiras, renuncia a toda forma de magia e logro, convocando o público a quebrar o sortilégio da ficção com seus aplausos.
Muito bonito, mas, com exceção da realidade paralela criada e alimentada pelo presidente da República para consumo de seus 20% de fiéis, o que isso tudo tem a ver com a desgraceira do presente em nossa ilha de insensatez?
Pouco, reconheço, mas um pouco que pode virar muito se tomarmos uma pequena liberdade com a trama. Basta imaginar que Próspero perdeu o controle da ilha para seu escravo Caliban.
Órfão da perversa bruxa Sycorax (a ditadura militar?), Caliban é uma criatura bárbara, deformada e assustadora, um semi-humano cheio de ressentimento que tenta estuprar Miranda —porque aos seus olhos a filha de Próspero, sendo linda, merece— e trama em segredo sua vingança.
Ao assumir o poder na ilha mágica onde a vontade do senhor é capaz de criar a própria realidade, Caliban transforma a comédia shakespeariana em pesadelo puro. Não há final feliz possível para essa história enquanto ele estiver lá.
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