Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Ler clássicos nos oferece um esteio quando o mundo está de ponta-cabeça

Crítico literário Harold Bloom ensinou que a leitura solitária proporciona um amadurecimento prazeroso

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Em “Como e Por Que Ler?” (2000) o professor e crítico literário Harold Bloom (1930-2019) retoma a defesa dos clássicos da literatura, a partir de uma reflexão sobre a importância da leitura enquanto hábito pessoal. Ou seja, enquanto uma rotina que formamos por iniciativa própria, independente da compulsória prática acadêmica.

Para Bloom, enquanto expressão da vontade do individuo, o hábito da leitura atende a um interesse pessoal, permanecendo, assim, essencial para o desenvolvimento da capacidade de reflexão e autoconhecimento: “Lemos para fortalecer o ego, para tomar ciência dos seus autênticos interesses”.

Bloom aparenta falar diretamente com leitor solitário, que descobre os seus interesses de leitura como que para além dos muros da escola e da universidade, seja durante um passeio pela livraria do bairro, seja durante uma visita à casa de um parente. Foi assim, por exemplo, que eu descobri boa parte das obras que marcaram a minha adolescência, como “Hamlet”, “Assim Falou Zaratustra” e “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”.

Harold Bloom sentado em uma cadeira com uma muleta e uma estante de livros e um quadro ao fundo
O crítico literário Harold Bloom em Nova York, em 2011 - Mark Mahaney - 12.mar.11/The New York Times

Na época, talvez, eu não houvesse compreendido esses livros por inteiro. Também, como poderia fazê-lo? Cada uma dessas obras permanece inesgotável à sua maneira.

Embora seja fácil para um adolescente identificar-se com aspectos específicos dos textos de Shakespeare, Nietzsche e Rainer Maria Rilke, ainda hoje, ao retomar essas leituras, surpreendo-me com detalhes que antes me passaram despercebidos. Por exemplo, ao tomar a pergunta “Quem Vem Lá?” como ponto de partida, “Hamlet” talvez seja a obra que mais se adapte a sugestão feita por Bloom de que a leitura seria um modo privilegiado de mantermos um diálogo com nós mesmos.

Pergunto-me se eu teria passado tantos anos em contato com uma mesma obra caso ela tivesse feito parte do meu currículo escolar. Tenho quase certeza que não. Afinal, a leitura feita para um curso nem sempre coincide com a dúvida que caracteriza um determinado momento das nossas vidas.

No caso da minha adolescência, talvez, em virtude da repentina separação dos meus pais, as questões que mais me atormentavam encontraram expressão em Shakespeare: "Será mais nobre suportar na mente. As flechadas da trágica fortuna. Ou tomar armas contra um mar de escolhos. E enfrentando-os, vencer?”.

Lembro-me de passar as tardes deitada no telhado da casa da minha avó, agarrada à minha cópia de “Hamlet” como quem tenta atravessar um precipício equilibrando-se em um barbante: por que as coisas mudam de uma hora para outra? Como eu posso estar segura de mim diante de tantas mudanças? Como fazer para não sucumbir à inércia?

Não há dúvidas de que aquilo que aprendemos nas escolas é precioso. O hábito da leitura, ainda que íntimo e pessoal, sempre ganha em profundidade a partir do momento em que tomamos conhecimento dos pormenores da história da literatura e passamos a dominar as técnicas que nos permitem apreciar o que há de particular em cada gênero literário.

Mas, segundo Bloom, a leitura solitária, essa que nós adquirimos por necessidade própria, distingue-se daquela desenvolvida na escola em um quesito fundamental: o amadurecimento que ela nos proporciona é prazeroso. Isso é assim porque o prazer que sentimos ao cultivarmos o hábito da leitura estaria relacionado aos nossos mais íntimos projetos de autoaperfeicoamento.

Um exemplo de como esse exercício cumpre importante papel nos projetos de autoaperfeicoamento pode ser encontrado em Goethe, em "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister" (1795-1796), quando o herói do romance, Wilhelm, entra em contato com a obra de Shakespeare pela primeira vez.

A descoberta do autor por Wilhelm representa um dos momentos decisivos na sua formação, emprestando-lhe maior compreensão da sua vida interior, permitindo-lhe alcançar maior conhecimento de si e, consequentemente, tornar-se um pouco mais perceptivo em relação às nuances do comportamento dos seus semelhantes. Assim, ele constata:

“Não me lembro de nenhum outro livro ou ser humano, nem de qualquer acontecimento da vida que tanta impressão me tenha causado quanto essas peças magnificas [...]. Parecem obra de um gênio celestial, que se aproxima dos homens para lhes dar a conhecer a si mesmos da maneira mais natural [...]. Todos os presságios em relação à humanidade e a seu destino, que me acompanhavam desde pequeno, sem mesmo deles me advertir, encontro-os realizados e desenvolvidos nas peças de Shakespeare. Temos a impressão de que ele nos decifrou todos os enigmas, sem que possamos, entretanto, dizer: aqui está a chave que os explica!”.

Nem todos os livros são capazes de nos proporcionar semelhante experiência à de Wilhelm. Isto é, nem toda leitura transforma o indivíduo. Para Bloom, somente a leitura de uma obra verdadeiramente profunda, capaz de suscitar o pleno engajamento de todas as nossas faculdades, cumpre o objetivo de nos proporcionar um exame da nossa vida interior, abrindo-nos a possibilidade de amadurecimento.

Segundo o crítico, podemos até não estarmos totalmente conscientes desse fato. No entanto, sentimo-nos atraídos por autores como Shakespeare por sempre lermos “em busca de mentes mais originais do que a nossa”.

Em um dos seus ensaios em “Como e Por Que Ler?”, Bloom credita a Shakespeare, principalmente na tragédia de Hamlet, o mérito da invenção do humano, tal como o compreendemos hoje a partir de uma experiência de modernidade:

“À espreita, ouvimos Hamlet quando nos tornamos Hamlet; eis a arte de Shakespeare, nessa que é a mais original de todas as suas peças. Recusar uma identificação com Hamlet é, hoje em dia, algo quase antinatural [...]. Hamlet se tornou a representação máxima da própria inteligência, e não apenas da inteligência ocidental ou oriental, masculina ou feminina, negra ou branca, mais da inteligência humana, no que ela tem de melhor; porque Shakespeare é o primeiro escritor verdadeiramente multicultural.”

Coincidência ou não, esse também aparenta ser alguns dos argumentos implícitos no romance de Goethe ao retratar a transformação de Wilhelm a partir da leitura de Shakespeare, seja do momento em que o personagem adota para si uma maneira de vestir mais aproximada à do seu ideal, seja ao trazer a encenação de “Hamlet” para dentro da própria narrativa, com Wilhelm atuando no papel do príncipe dinamarquês, acreditando transformar-se em uma só personagem com o herói da tragédia.

Talvez por estar ciente da maneira como passamos a nos identificar com aquilo que lemos, a ponto de a leitura influenciar a nossa maneira de pensar o mundo, Bloom tenha sido capaz de nos alertar da importância dos bons livros.

Ainda ontem, deparei-me com um questionamento bastante corrente: se o isolamento imposto pela pandemia representaria uma oportunidade para embarcarmos em uma leitura dos clássicos.

Penso que sim, pois, se Bloom estiver certo em sua reflexão, a leitura de obras que sobrevivem aos séculos e que, de certa forma, nos ajudam a pensar o individuo e a condição humana é capaz de nos oferecer um esteio em momentos de crise.

Ler não irá resolver boa parte dos nossos problemas. No entanto, para ter certeza de que não desperdiçamos tempo em um aprendizado egocêntrico, mesmo quando o mundo parece estar de ponta-cabeça, vale enfatizar o conselho de Bloom: “Não devemos recear o fato do nosso crescimento como leitores parecer por demais autocentrado, pois, se nos tornamos leitores autênticos, os resultados dos nossos esforços nos afirmarão como portadores de luz para outras pessoas”.

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