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Artes Cênicas

Grupo Galpão cria peça onírica para fugir do sufoco da pandemia

'Sonhos de uma Noite com o Galpão' propõe convívio com imagens de pesadelos da atualidade

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Sonhos de uma Noite com o Galpão

Em seus últimos trabalhos, o grupo Galpão tem tentado elaborar artisticamente a angústia que a pandemia impôs a todos nós. “Sonhos de uma Noite com o Galpão” pretende lidar tanto com o potencial dos sonhos em transpor os limites dessa realidade asfixiante, como também com sua capacidade de revelar, na sua forma de pesadelo, a profundidade com que a pandemia tem nos afetado.

O sonho aparece no espetáculo virtual do Galpão em voltagem dialética. Sonhar é esperança e chance de respiro, mas os registros oníricos que aparecem na peça também pretendem documentar a maneira que o medo adentra nosso inconsciente.

Imagens expansivas, como sonhar com asas, montanhas ou com largos campos abertos, convivem com o pesadelo de se ver, de repente, sem máscara, dentro de um avião lotado.

Não é de hoje que esta zona enigmática, oracular e, ao mesmo tempo, de liberdade do sonho desperta interesse no ambiente da criação artística. Basta pensar na importância capital que a dimensão onírica teve na poesia e no teatro simbolista do século 19 ou no programa do surrealismo no início do século seguinte.

O sonho foi ali um dos caminhos de ruptura com as dinâmicas embrutecedoras da vida moderna. A dimensão onírica, para aqueles artistas, não era fuga da realidade, mas um tipo de resistência ao pragmatismo do mundo burguês, com seu “império da lógica”, nas palavras de André Breton.

No caso dos surrealistas, interessados também pela revolução social, o universo dos sonhos era mobilizado como arma para “abolir a realidade” e reinventar a vida, ele abriria caminho para superar —ou, pelo menos, provocar— a forma de pensar, escrever e de se relacionar impostas pelo capitalismo moderno.

Dizem que o escritório da central surrealista, o chamado Bureau des Recherches du Surréalisme, dirigido por Antonin Artaud em 1925, recebia e anotava sonhos das pessoas que passavam por lá. Era uma forma de estimular novas possibilidades de lidar com o real e também colecionar material que pudesse ser elaborado pelos integrantes do movimento num “laboratório de novo gênero, para contribuir na invenção de uma vida nova”.

Os artistas do Galpão fizeram algo parecido no processo de criação do espetáculo. Eles recolheram sonhos de mais de 150 pessoas, vários deles ouvidos numa movimentada feira livre em Belo Horizonte. Para isso, mobilizaram afetos solidários como a confiança, a vontade de se abrir e a partilha. É um gesto de sensibilidade e interesse pelo outro, cujas cenas documentais são bem incorporadas pelo espetáculo virtual.

Entretanto, a elaboração artística dos sonhos recolhidos pouco se parece com a forma como simbolistas ou surrealistas tentaram alçar o onírico a elemento central de suas poéticas, tornando tudo “precipitado de sonhos”, como queria Artaud.

No videoespetáculo do Galpão, os sonhos aparecem quase que só no nível do conteúdo, muitas vezes “traduzidos” em forma linear e descritiva, neutralizando, assim, sua configuração estrutural caleidoscópica. Também são relatos mais ou menos empilhados em cena, como se a simples coleção deles fosse potente o suficiente para sustentar o espetáculo.

Além disso, a peça atenta apenas para certas superficialidades singelas do sonho, desviando da dificuldade em lidar com a conjugação de traumas, horror, obsessões eróticas e selvageria que atravessam inconscientes. “Sonhos de uma Noite com o Galpão”, como o trocadilho do título já deixa antever, opta por um caminho soft, fácil e confortável, mas sem grandes consequências estéticas, girando em falso em torno de um lirismo tão ameno quanto inofensivo.

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