Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O Qatar é um país rico em zebras

Como nasceu o brasileirismo que dá forma de bicho ao 'impossível'

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As vitórias da Arábia Saudita sobre a Argentina e do Japão sobre a Alemanha, ambas por 2 a 1 e de virada, fazem do Mundial do Qatar a Copa da zebra —pelo menos até que uma notícia mais bombástica se imponha, o que não será fácil.

Deixo aos brilhantes colegas Tostão, Juca Kfouri e PVC, entre outros especialistas, a missão de analisar esses resultados pelo viés esportivo.

Ou mesmo, digamos, por um ângulo psicossocial, no que as zebras possam revelar sobre uma nova era globalizada em que antigos gigantes e nanicos caminhem, quem sabe, para equalizar suas estaturas.

Thomas Müeller, da Alemanha, disputa bola com Endo Wataru, do Japão, nesta quarta (23); em nova zebra da Copa do Qatar, japoneses venceram por 2 a 1 - Cao Can/Xinhua

Eu fico com a história por trás do brasileirismo zebra, que o Houaiss define assim: "em competição esportiva, loteria etc., resultado anormal, inesperado, contrário às expectativas".

Vamos deixar de lado por enquanto a referência à loteria, também presente na definição do Aurélio. Fundadas no acaso, loterias não comportam zebra, que pressupõe um favorito. A única exceção, a loteria esportiva, traz suas zebras de dentro do campo.

Reza a lenda que a expressão foi criada pelo treinador Gentil Cardoso (1906-1970), o primeiro técnico negro de destaque no futebol brasileiro e o primeiro treinador de Garrincha.

Falo em lenda por ser difícil determinar a autoria dessas pérolas de criatividade vocabular que cruzam os ares o tempo todo —umas poucas destinadas a sobreviver à passagem dos anos, como zebra, mas a maioria de uma efemeridade de borboletas.

Talvez Gentil Cardoso tenha dado circulação a uma expressão de autoria anônima. Personagem folclórico do futebol, metido a frasista, o treinador que Ruy Castro define no livro "Estrela Solitária" como "neurótico ao cubo" agradava a repórteres e cronistas, que gostavam de fazer eco às suas tiradas.

Com tais credenciais, faz sentido que Cardoso tenha sido pelo menos o grande divulgador da zebra, por mais que seja difícil precisar quando começou a fazer isso.

Nelson Rodrigues contou essa história numa crônica de 1971, situando-a em algum momento do passado. Outras fontes cravam o ano de 1964, quando Cardoso, então dirigindo a pequena Portuguesa carioca, teria cantado vitória contra o Vasco da Gama dizendo que ia "dar zebra" —e a vitória veio, aliás por 2 a 1.

O problema com essa versão é que, segundo o já citado Houaiss (que manda bem em questões etimológicas), a expressão "dar zebra" já circulava no português brasileiro àquela altura, tendo feito sua estreia em torno de 1959.

Um grande reforço na popularidade da expressão veio nos anos 1970 com o personagem da Zebrinha, criado pelo cartunista Borjalo para anunciar domingo à noite no programa Fantástico, da TV Globo, os resultados da loteria esportiva.

Não há dúvida de que a inspiração da expressão é o jogo do bicho —razão provável de os dicionários mencionarem equivocadamente resultados lotéricos entre as zebras possíveis.

Nessa forma popular de loteria criada em fins do século 19 no Rio de Janeiro, ainda hoje ilegal, o apostador escolhe um bicho num elenco zoológico de 25 espécies.

Tem de tudo ali: gato, camelo, veado, leão, até avestruz. Mas não tem nada parecido com um charmoso equino listrado de preto e branco. Essa ausência faz com que "dar zebra" no jogo do bicho seja simplesmente impossível.

Aí é só acrescentar a hipérbole, o exagero, para que a zebra dê conta de nomear aquilo que, numa disputa esportiva, é quase impossível de tão improvável. Só que, no futebol, impossível não há.

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