Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Pelé como verbete e definição racista expõem limites da lexicografia

Senso comum dá a dicionários aura mágica que ultrapassa o seu papel

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Para muita gente, talvez a maioria, estar ou não estar no dicionário é um tira-teima hamletiano pelo qual todas as palavras devem ser julgadas. Ser ou não ser verbete, eis a questão.

O senso comum reveste dicionários de uma aura mágica que ultrapassa seu papel como registros do léxico de uma língua. Registros sempre imperfeitos, retratos bidimensionais de uma bagunça em perpétuo movimento.

Dois episódios recentes nos ajudam a refletir sobre os limites da lexicografia e também sobre os mal-entendidos provocados pela reputação dos dicionários como tábuas da lei.

O primeiro é a inclusão do verbete "pelé" na edição digital do Michaelis. Como noticiou o UOL em 26/4, tudo começou com "uma grande campanha" do canal SporTV, "que obteve mais de 100 mil assinaturas para que Pelé recebesse mais esta grande homenagem".

Como fazer homenagem não é atribuição de dicionário, o resultado é um verbete que exibe pouca intimidade com a bola. Digamos que Pelé tenha mesmo virado substantivo comum, em vez de ser só uma metáfora eloquente de excelência (como em "fulano fala bonito, é o Rui Barbosa da turma").

Se isso está aberto ao debate, mais difícil é sustentar que seja adjetivo. Alguém já viu uma frase como "ele é um cozinheiro pelé"? Pode ser que exista tal uso, a língua é vasta. O Michaelis afirma que sim, mas não traz nenhum exemplo.

A questão dos dois gêneros também é controversa: "Ela é a pelé do tênis", como consta no verbete, parece contrariar o uso corrente. Tudo isso vem embalado em estilo palavroso, laudatório. "Considerado o maior atleta de todos os tempos"; por quem?

Para mim, Pelé é não só o maior jogador de futebol que já existiu. É o maior que jamais existirá, devido ao cruzamento feliz de seus méritos excepcionais com o momento histórico que lhe coube viver. Dicionário nenhum pode aumentar ou diminuir seu tamanho —nem deveria se preocupar com isso.

A linguista portuguesa Margarita Correia, que conduz uma pesquisa sobre o uso de dicionários em todo o mundo lusofônico (para participar, clique aqui), lembra que eles "são feitos por seres humanos e, como tal, estão sujeitos a erros, como qualquer obra humana".

Os erros podem ser graves. Em seu discurso de aceitação do Prêmio Camões, há duas semanas, a escritora moçambicana Paulina Chiziane apontou um desses: a definição lexicográfica da palavra catinga como "cheiro nauseabundo característico da raça negra".

O fato foi um dos que a autora citou em defesa da tese de que o português "precisa de uma limpeza, de uma descolonização". Ocorre que a língua —como a vasta maioria de dicionários e falantes— parece inocente nesse caso: catinga é mau cheiro, não tem cor.

Como apontou o escritor português Bruno Vieira Amaral no jornal "Expresso", apenas um dicionário se lambuza de racismo ao definir catinga: no dicionário da Porto Editora, 8ª edição, lemos que o substantivo significa "cheiro desagradável da pele dos Negros; suor malcheiroso".

Amaral acrescenta que "afinal são alguns dicionários que precisam de limpeza, embora acredite que a maioria das pessoas que ao longo da vida usou a palavra não a aprendeu num dicionário. Concluo que é mister preservar a catinga. Não a percamos juntamente com a água do banho".

Concordo. O bom é que os dicionários, longe de escritos na pedra, podem ser aprimorados. Que o da Porto Editora se livre logo do seu fedor.

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