Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu forças armadas

O que fazer com nossos milicos?

Termo do século 19 ri da farda, mas não disfarça o medo que ela inspira

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A palavra milico não é agradável e nunca quis ser. Brasileirismo que significa "qualquer militar das forças armadas" (com iniciais minúsculas mesmo, reclamem com o Houaiss), o vocábulo aparece em dicionários como informal e pejorativo, quer dizer, feito para ofender ou pelo menos alfinetar, desinflando, aquele ar superior dos militares.

Não é palavra nova. O mesmo dicionário informa que sua primeira aparição lexicográfica data de 1898 e sugere uma origem em terras gaúchas, que sempre foram férteis em milicos. O pioneirismo do registro coube a José Romaguera da Cunha Corrêa, autor do "Vocabulário Sul-Rio-Grandense".

Há quem acredite que milico foi formado pela junção do termo militar com o sufixo diminutivo -ico. Outros apostam numa origem a partir de milícia, o que me parece mais provável. Obviamente, estamos falando de milícia no sentido histórico, não no contemporâneo.

A família gerada pelo latim "miles" (soldado) foi se diversificando com o tempo. No nosso século 19 havia uma clara distinção social entre militares e milicianos. Estes, mesmo após ganharem peso institucional com a criação da Guarda Nacional, em 1831, tinham papel mais modesto de força auxiliar e policial.

Se a ideia dos falantes anônimos que chamamos de povo era criar uma palavra que tirasse sarro dos militares e da sua pose de salvadores da pátria, partir de milícia já seria meio caminho andado.

De todo modo, é curioso que o apoio político apaixonado que os militares brasileiros do século 21 decidiram dar a um político ligado às milícias cariocas –agora em sua acepção mafiosa atual– os tenha lançado numa crise de credibilidade em que a palavra milico volta a ganhar um peso que não tinha desde a ditadura militar inaugurada em 1964.

Milico era uma das palavras preferidas do colunista Ivan Lessa no jornal satírico carioca "O Pasquim", nos anos 1970. Já morando em Londres, o que o deixava a salvo da retaliação de algum major mais esquentado, Ivan não perdia a oportunidade de chutar canelas fardadas –e, se a oportunidade não lhe caía no colo, ia atrás dela. O que escreveu em agosto de 1978 dá ideia do quanto a palavra ainda era, digamos, perigosa:

"Eu gosto daquela história da senhora que, num apartamento de Ipanema, na terceira mão do biriba, de repente, no meio de um caso, para descrever um cunhado, usou do termo ‘milico’, fazendo-se, em seguida, um silêncio de um minuto, como se em memória de todos os meninos que saíram às ruas e nos muros escreveram a palavra atentatória".

Em Londres ou no Rio, exigia coragem escrever e publicar àquela altura uma referência dessas –mesmo que meio cifrada– aos "meninos" assassinados pela ditadura por protestar contra ela. E poucos anos depois, como se sabe, os responsáveis por transformar tortura e assassinato em política de Estado foram todos anistiados, meu Brasil.

A janela que se abriu nos anos 1980 para repensar o papel social dos agentes públicos fardados não foi aproveitada. Como será que o governo Lula e os atuais comandantes das Forças Armadas vão lidar com os crimes cometidos por militares no governo Bolsonaro?

Se o país perder mais essa oportunidade, se milico continuar a ser uma palavra necessária para traduzir essa relação complicada, mistura de desrespeito e medo, que a maior parte da sociedade tem com os militares, é possível que na próxima eles aprendam a apoiar um fascista menos incompetente e lambão –e aí, babau.

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