Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Afinal, quem torceu o torcedor?

Sentido esportivo de torcer nasceu nas corridas de cavalo do século 19

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O Campeonato Brasileiro que chega ao fim com mais um triunfo do Palmeiras já entrou para a história como aquele em que um torcedor, o do Botafogo, foi submetido à mais cruel desilusão de que se tem notícia na memória de todas as torcidas.

Mais do que torcer, coube ao botafoguense em 2023 ser torcido, retorcido, entortado, torturado, espremido com desumanidade extrema, até nada sobrar do título nacional que no fim do primeiro turno parecia garantido.

Esse tipo de ação violenta exercida sobre a matéria para lhe dar forma de rosca é o sentido original do verbo torcer, aquele que ele trouxe do latim "torquere" quando desembarcou no português, ainda na Idade Média.

Torcida do Botafogo em partida no estádio Nilton Santos, o Engenhão - Ricardo Moraes/Reuters

Claro que estávamos longe da moderna acepção esportiva de torcer. Esta, um brasileirismo, tem pouco mais de cem anos, mas nesse período já deu um jeito de se envolver numa lenda tão furada quanto difundida, que convém retificar.

O torcedor desapontado nesse caso não será o do Botafogo, mas o do Fluminense, habituado a uma história que, no site oficial do clube carioca, é contada assim:

"Se, hoje, os amantes de esporte são conhecidos como torcedores, deve-se, principalmente, às mulheres tricolores. Nas duas primeiras décadas do século 20, o campo da rua Guanabara, sede do Fluminense, recebeu o movimento que originou o termo...".

Que "movimento" era esse? Prossegue a explicação: "Em lances decisivos, as moças recorriam às suas luvas para aliviar o nervosismo. Em razão do calor no Rio de Janeiro, elas retiravam o acessório. Depois, torciam a vestimenta, movimento que chamou a atenção de um ilustre frequentador dos jogos do clube".

Esse "ilustre frequentador" era o escritor Coelho Netto, entusiasta do futebol e dirigente tricolor, a quem cabe adicionar à narrativa uma pitada de alta cultura. Teria sido ele, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, o responsável por popularizar o novo sentido do verbo ao usá-lo em seus textos.

A história soa bem e já foi repetida à exaustão, mas é falsa. Em 2017, o pesquisador Paulo Cezar Filho –tricolor, aliás– divulgou em seu blog, chamado Jornalheiros, um achado que a reduz a pó. De arroz.

Partida da seleção brasileira pelo Campeonato Sul-Americano de 1919, no estádio das Laranjeiras, do Fluminense - CBF

Trata-se de uma crônica publicada no jornal "O Paiz" em 1894 –oito anos antes da fundação do Fluminense– por J. Guerra, pseudônimo de outro escritor que estaria entre os fundadores da ABL, Urbano Duarte. Nesse texto, a torcida esportiva já aparece em sua plenitude, mas ligada às corridas de cavalo.

"Um amador de corridas ‘torce’ para o seu cavalo vencer, embora ele venha em 4º ou 5º lugar", escreve o cronista, atribuindo a criação da gíria a um certo Manoel Joguinho –provavelmente um personagem fictício, símbolo do apostador anônimo.

O autor documenta também que, mais do que estar esportivamente maduro, o verbo já transbordara para outras esferas da vida: "O comprador de bilhetes de loteria ‘torce’ para que a máquina Fichet componha o seu número. A moça solteira ‘torce’, ‘torce’, até que certo rapaz louro a namore...".

A razão dessa expansão de sentido é algo que só podemos especular. A angústia de quem torce as mãos em nervosa expectativa deve ser parte –se não for a totalidade– da explicação.

Uma coisa é certa: o Fluminense de Coelho Netto, que este ano conquistou sua primeira Libertadores, não tem nada a ver com essa glória linguística. Como torcedor do Flamengo, não posso dizer que esteja inconsolável.

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