Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Penélope Charmosa foi à Copa

Armas secretas a seleção tem, falta um carro que chegue ao fim da viagem

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Num dos melhores retratos literários da paixão pelo futebol já escritos, "Febre de Bola" (Companhia das Letras), publicado em 1992, o inglês Nick Hornby fala em termos originais de seu encantamento infantil com a seleção brasileira que foi tricampeã no México em 1970.

Para ele, a equipe de Pelé, Tostão e Jairzinho lembrava "o Rolls-Royce cor-de-rosa da Penélope Charmosa e o Aston Martin do James Bond, ambos equipados com traquitanas sofisticadas, como assentos ejetáveis e armas camufladas que os diferenciavam dos carrinhos normais e sem graça" (tradução de Christian Schwartz).

Jogadores da seleção brasileira após a eliminação na Copa do Mundo para a Croácia - Xiao Yijiu - 12.dez.22/Xinhua

Extraídas da cultura pop, as imagens de futurismo retrô de "Febre de Bola" falam de um tempo em que a vida real era cheia de Fuscas "normais e sem graça", enquanto certo imaginário coletivo sonhava com viagens espaciais e eletrodomésticos que prometiam fazer o serviço de casa sozinhos.

Hoje sabemos que aquele foi o último momento em que o ser humano ocidental teve o direito de acreditar, sem ser chamado de ingênuo, que o progresso tecnológico conduziria o mundo a um futuro de bem-estar crescente para todos.

Como logo ficaria claro, a fútil Penélope fazia um mal tremendo à causa feminista, sobretudo por ser dependente da proteção de Peter Perfeito, e James Bond era um matador de aluguel a serviço de um poder imperial perverso.

Sim, foi aquele mundo de "traquitanas sofisticadas, assentos ejetáveis e armas camufladas" –tudo movido a combustíveis fósseis, é claro– que levou o planeta à beira do colapso ambiental e deu em Elon Musk.

Evidentemente, a seleção do tri não tem nada a ver com isso. Estamos falando de metáforas, criaturas mentais extremamente sensíveis ao contexto. Mesmo assim, como alguém que também era criança em 1970, a cada Copa eu me pego pensando mais uma vez naquele Rolls-Royce cor-de-rosa.

Confesso que nunca mais me saíram da cabeça as adoráveis imagens infantis sacadas por Hornby para dar conta do que escapava ao senso comum naquele time mitológico, ponto mais alto da história do futebol brasileiro e mundial. Gostaria de ter escrito aquilo.

E não faz sentido? No Catar, a seleção brasileira mostrou que continua trabalhando no ramo das armas ocultas sob uma aleta no para-choque. O que é aquele voleio do Richarlison? O que são as semelhanças de personalidade do Neymar com a Penélope Charmosa?

O fato é que os truques perderam eficácia. Nosso futebol anda distante do ápice que levou outro britânico, o historiador Eric Hobsbawm, a escrever esta louvação vertiginosa: "Quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?".

O declínio era inevitável, segundo Hornby: "De certo modo, o Brasil estragou tudo pra todos nós. Tinha revelado, ali, uma espécie de ideal platônico que ninguém, nem o próprio Brasil, jamais seria capaz de atingir outra vez".

Pode ser, mas o futebol não parou de rodar. Em 2022 até a Inglaterra de Hornby, quem diria, compareceu com um belo time. E o genial Messi, num dos encerramentos de carreira mais exuberantes de que se tem notícia, tem acionado repetidas vezes o botão que ejeta de qualquer papo sério os saudosistas.

Bilionário, ultraprocessado, regido por uma entidade mafiosa, o futebol está vivo. Falta só o Brasil construir um carro atualizado que, além das armas secretas, tenha design e motor capazes de chegar ao fim da viagem. Quem sabe um modelo elétrico?

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