Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Quando o Carnaval era interdição

Como pode a abstinência estar na origem de uma festa tão permissiva?

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A etimologia é um campo de estudos tão fascinante –e tão escorregadio– que não deveria surpreender ninguém a revelação de que a palavra carnaval tem sua origem profundamente ligada à ideia de... abstinência, interdição.

Surpreende, claro. Abstinência e interdição? Como isso pode ser possível se estamos falando de uma festa baseada na permissividade, na indulgência com tudo aquilo que os puritanos chamam –muitas vezes com inveja e despeito evidentes– de pecados da carne? Aliás, carnaval tem a ver com carne, certo?

Sim, a palavra carne está dentro do carnaval. Mas convém explicar isso direito. Em primeiro lugar, não estamos falando da carne nua ou seminua, com confete grudado na pele suada, que desfila na avenida ou pula nos blocos de rua. Trata-se da carne de bichos mesmo, aquela que se come no sentido literal.

Aí entra a interdição: segundo quase todos os etimologistas, a expressão latina que deu origem à palavra carnaval, depois de uma tabelinha com o italiano "carnevale", é "carnem levare", que significa suspender, se abster do consumo de carne.

Como sempre há os que atravessam o samba, vale registrar que o maior desafio a essa explicação foi apresentado um dia pela tese que liga o carnaval ao latim "carrus navalis", isto é, carro naval, precursor dos carros alegóricos das escolas de samba. A historinha já gozou de popularidade, mas hoje não tem crédito com nenhum estudioso sério que eu conheça.

De volta a "carnem levare": de início, a expressão se referia apenas à véspera da Quarta-Feira de Cinzas, início da Quaresma, período em que, segundo uma tradição católica praticamente caída em desuso, mesmo as pessoas mais carnívoras deveriam se tornar vegetarianas por uma questão de fé. Era o dia de dar adeus à carne.

E assim começamos a entender como aquilo que nomeava a suspensão de um prazer acabou por batizar o que Rimbaud chamaria de "desregramento de todos os sentidos". Nada mais humano do que consagrar a véspera do início do jejum de carne a um festival de chuletas, maminhas e lombos suculentos, confere? Hoje, o pecado da gula; amanhã, a virtude!

Como se vê, não era afinal tão inusitado que um veto sumário ao prazer estivesse na origem do nome de uma festa dedicada ao prazer: como nossa época de polarização extrema vem comprovando mais uma vez, é sempre forte a ligação de uma ideia com a ideia diametralmente oposta. Basta inverter seu sinal.

Inversão –e subversão– era desde o início a alma do negócio de Momo, o rei do Carnaval, nome próprio derivado de um substantivo comum que, por sua vez, tinha nascido de outro nome próprio. Máscaras por trás de máscaras.

Ao desembarcar no português no século 15, a palavra momo nomeava um gênero teatral popular na Europa medieval, comédia escrachada que se dedicava a ridicularizar o poder e tudo o que fosse sagrado.

Por extensão, os comediantes –todos mascarados– que encenavam momos passaram a ser chamados de momos também. O Rei Momo era, portanto, apenas o mais graduado da turma, o líder dos bufões.

Rei Momo no Carnaval do Rio em 2023 - Ricardo Moraes/Reuters

Ocorre que, segundo a tese mais aceita, aquele momo medieval também tinha raízes profundas, que nos levam ainda mais longe no passado. A palavra seria descendente, por intermédio do latim Momus, do grego Mómos, "deus, filho da noite, personificação da maledicência".

Com carne ou sem carne, com devoção ou descrença diante de Momo, a coluna deseja um bom Carnaval a todos.

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