Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Descrição de chapéu tecnologia

Tradução por inteligência artificial é português no corpo mas inglês na alma

E se o robô que traduz para o portinglês estiver falando a nossa língua?

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A tradução –ou algo parecido– da reportagem do jornal The New York Times sobre um erro da polícia americana foi publicada no site da Folha na terça (13) de manhã, sob o título "Homem declarado morto reaparece após família receber cinzas nos EUA".

No texto era possível ler, entre outras coisas espantosas, a expressão "morador masculino do centro" e a seguinte frase: "Eventualmente, ele foi liberado para uma instalação de moradia temporária em Portland, Oregon, com a condição de que ele completasse um programa de recuperação de vícios".

Aqui eu poderia perguntar, repetindo o título do livro que lancei em 2005: "What língua is esta?". Inglês, óbvio, apenas com a troca de palavras do idioma original por outras semelhantes –ou falsamente semelhantes– da língua portuguesa.

Tyler Chase, que foi declarado morto de forma equivocada nos EUA
Tyler Chase, que foi declarado morto de forma equivocada nos EUA - Tyler Chase via The New York Times

Será preciso dizer que "eventually" significa "por fim" no original, enquanto seu falso cognato "eventualmente" indica aquilo que ocorre ocasionalmente? Devo apontar que "instalação de moradia temporária" e "programa de recuperação de vícios" não fazem muito sentido em nossa língua –talvez só um pouquinho mais do que "morador masculino"?

O resultado é um compósito linguístico, uma espécie de portinglês que nem precisa de palavras da língua de George Orwell para se impor: o idioma original está inteiro ali, a alma sintática é dele. Embora o corpo seja lusófono, o software é alienígena.

O texto em questão foi traduzido por uma inteligência artificial, é claro. A prática tem se disseminado na imprensa por ser quase gratuita, além de incomparavelmente mais veloz. Os tradutores humanos que lutem –mas é possível que em termos trabalhistas essa guerra já esteja perdida.

De todo modo, recomenda-se –mesmo que apenas em nome das velhas medalhas de honra que abarrotam as gavetas do jornalismo– que algum ser humano dê uma revisada naquele troço antes de publicar.

Tanto faz que seja um ser humano masculino, feminino ou não binário, como diria o robô. O importante é que tenha sangue nas veias e seja um falante mais ou menos proficiente da língua –natural, eis o xis da questão– para a qual se traduz.

Reconheça-se que esse passo foi dado pelo jornal, embora com atraso. Publicada às 9h07, a reportagem ganhou cinco horas depois uma versão expurgada dos erros de tradução mais clamorosos. O texto continuou artrítico, meio mal traduzido, mas as bobagens que provocavam riso ou ranger de dentes foram limadas.

Esta não é, embora pareça, mais uma coluna sobre a IA, o que ela já sabe fazer e o que ainda precisa ralar para aprender. Ou melhor, até é, mas tendo na mira outro problema –quem sabe mais grave.

E se em breve o ridículo portinglês de traduções robóticas como aquela se tornar exemplar do modo como falamos português no Brasil? Pensando bem, quantos leitores e leitoras já não estranham mais o "eventualmente" anglófono e acham "programa de recuperação de vícios" uma expressão normal?

Xenofobia linguística é o fim da picada, convém não esquecer. A importação de palavras estrangeiras sempre enriqueceu as línguas, nunca as ameaçou. Algo bem diferente é deixar a educação de um país se deteriorar a tal ponto que a alma da sua língua se venda baratinho e até na literatura se encontrem construções que parecem saídas de dublagens vagabundas da TV.

Será que, eventualmente, todos vamos realizar que a linguagem é sobre comunicando e relaxar?

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