Shireen Mahdi

Economista principal do Banco Mundial para o Brasil e doutora em economia pela Universidade de Manchester (Reino Unido)

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A reforma tributária pode ser uma excelente política de saúde

Preços mais acessíveis para alimentos in natura poderiam ter papel essencial na segurança alimentar

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A reforma tributária, atualmente em debate no Congresso brasileiro, não se trata apenas de uma política fiscal. É também uma política de saúde. Isso porque moldará a produção e o consumo de alimentos e, como resultado, o sistema que permite (ou não) a todas as famílias brasileiras terem acesso a alimentos saudáveis. Tal fato foi reconhecido na emenda constitucional que deu início à reforma, com a criação do Imposto Seletivo aos produtos e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. O projeto de lei complementar que regulamenta a reforma incluiu nessa categoria, entre outros itens, tabaco, álcool e refrigerantes.

Barraca de feira de verduras e legumes como batata, mandioca, tomate e rabanete
Barraca de alimentos na feira livre de Perdizes, em São Paulo - Danilo Verpa - 9.ago.2022/Folhapress

Existe ampla evidência e experiência global –inclusive em um recente estudo do Banco Mundial– para mostrar que a tributação desses produtos pode provocar um ganho triplo, melhorando a saúde da população por meio da redução do consumo, diminuindo os gastos públicos para tratar os problemas de saúde e gerando recursos adicionais para políticas públicas. Considerando-se esses dados, o Imposto Seletivo seria o melhor mecanismo para efetivamente reduzir o consumo desses produtos.

Outro debate em curso na reforma tributária é sobre como o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que tributará o consumo de todos os brasileiros, pode incentivar um padrão de consumo mais saudável. Na proposta atual da reforma, o IVA seria aplicado a três categorias de alíquotas: zero (isento de imposto), reduzida (60% da taxa do IVA) e cheia. Na proposta atual, para alimentos, a alíquota zero é aplicada a alimentos da cesta básica, que incluem, em sua maioria, produtos saudáveis in natura ou minimamente processados, conforme recomendado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira. Em princípio, isso criaria um aumento relativo dos preços de ultraprocessados, o que desencorajaria seu consumo.

No entanto, um documento recente do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP estima que o consumo de alimentos e bebidas ultraprocessados cairia 19,6% com a inclusão de um Imposto Seletivo adicional de 20% ao imposto base do IVA, de 27%. Sem isso, a redução de consumo seria de apenas 7,2%.

Isentar mais produtos ultraprocessados com a alíquota zero ou reduzida do IVA não faz sentido do ponto de vista de saúde nem do ponto de vista fiscal e teria resultados não equitativos. Isso porque incentivaria a produção e o consumo de produtos comprovadamente prejudiciais à saúde. Além de obesidade e sobrepeso, o consumo de ultraprocessados tem sido associado à mortalidade precoce, a doenças cardiovasculares, hipertensão e câncer, entre outras doenças não transmissíveis (DCNT).

Uma vez que a reforma fiscal precisa ser fiscalmente neutra, colocar alimentos ultraprocessados na alíquota zero significaria que a população brasileira passaria de fato a subsidiar a produção deles, pois outros produtos teriam que ser tributados como compensação. Simulações usando a nova ferramenta do Banco Mundial mostram que colocar todos os alimentos na alíquota zero levaria a um aumento de quase 29% na alíquota padrão de IVA. Considerando a clara associação desses alimentos com obesidade e DCNTs, a população também pagaria com resultados piores de saúde, além de um sistema de saúde público e de planos privados cada vez mais sobrecarregados e caros.

Atualmente, os alimentos in natura representam mais de 50% do consumo de todas as faixas econômicas, com exceção do decil mais alto (grupo dos 10% da população com maior consumo). Enquanto isso, o consumo de ultraprocessados ainda não representa mais do que 30% do consumo em todos os decis. Em especial, os decis mais pobres tendem a consumir proporcionalmente menos ultraprocessados. Essa informação diferencia o Brasil de países como os Estados Unidos, onde ultraprocessados representam quase 60% do consumo energético.

No entanto, dados recentes mostram um rápido crescimento no consumo de ultraprocessados, inclusive entre populações de baixa renda. Nesse sentido, o país requer políticas públicas para coibir tal transição e evitar a piora nas condições de saúde que ela provocaria. E a reforma tributária poderia ser uma delas. Considerando-se que os alimentos in natura são a categoria mais sensível a mudanças de preço, em particular para os mais pobres, preços mais acessíveis para esses produtos também teriam um impacto positivo e progressivo, essencial para a segurança alimentar.

Não podemos nos esquecer que as DCNTs são responsáveis por 75% das mortes dos brasileiros. O consumo de ultraprocessados foi vinculado a 57 mil mortes precoces no Brasil em 2019, com impactos crescentes nas novas gerações. Uma em cada 10 crianças e um em cada três adolescentes brasileiros tinha excesso de peso em 2022, segundo um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Atlas Mundial da Obesidade de 2024 prevê que até 50% das crianças e adolescentes brasileiros entre 5 e 19 anos terão excesso de peso até 2035. Mudar hábitos de consumo já arraigados é muito mais difícil e caro, e nossa janela de oportunidade está se fechando. Nesse sentido, a Reforma Tributária pode ser uma excelente política de promoção de saúde.


Este artigo foi escrito em colaboração com meus colegas do Banco Mundial Courtney Price Ivins (especialista sênior em saúde), Roberto Iunes (economista sênior na área de saúde) e Bernardo Dantas (consultor na área de saúde).

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