Sílvia Corrêa

É jornalista e médica veterinária, com mestrado e residência pela Universidade de São Paulo.

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Sílvia Corrêa

O copo de água que mudou a relação médico-paciente

História de cirurgiã indiana mostra como empatia é ferramenta fundamental de atenção à saúde

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Nas grandes cidades, com cada vez mais frequência, os pacientes com câncer são atendidos em grandes serviços multidisciplinares, nos quais trabalham médicos de várias especialidades. É assim em São Paulo, em Washington, em Nova Déli.

É num desses centros, em Bangalore, no sul da Índia, em que Chauhan Neha trabalha.

Neha é cirurgiã plástica, daquelas que reconstroem as formas e a autoestima dos pacientes após a retirada dos tumores.

Na unidade de saúde em que ela opera, os cirurgiões dividem uma enfermaria, mas o local acabou batizado pelos funcionários como “QG da cirurgia plástica”. O motivo é surpreendente: Neha não delega a ninguém a troca de curativo dos pacientes dela e, por isso, passa muitas horas no local. Mas essa não deveria ser a regra? Pois é..., mas não é. E assim que começa essa história.

Como usuária mais frequente da sala, Neha não esconde que sempre gostou do privilégio de usá-la antes dos colegas. Em um dia, no entanto, chegou cedo ao local e deu de cara com um paciente. O sr. S.N., que ela não conhecia, havia sido colocado na sala a pedido do cirurgião de coluna, que ainda estava em consulta, mas queria ver a ferida cirúrgica dele.

Leitos em hospital
História sobre tratamento de paciente foi publicada no Indian Journal of Cancer - Divulgação

S.N. não podia ser movido para dentro e para fora da sala repetidas vezes, pois era paraplégico e havia sido operado recentemente. “Portanto”, conta Neha, “a equipe me lançou um olhar triste e me pediu para esperar até que o cirurgião viesse e terminasse o curativo.”

Sem opção, ela voltou ao consultório e seguiu avaliando os pacientes que a esperavam. Uma hora depois, no entanto, o cirurgião de coluna ainda não havia aparecido. S.N. continuava esperando e ocupando a sala de curativos. Os pacientes dela começavam a reclamar.

“Embora eu pudesse simpatizar com a condição do sr. S.N., por dentro eu estava furiosa (provavelmente pela invasão do que eu considerava meu território)”, diz Neha. “Além disso, a insistência dos meus pacientes e dos acompanhantes deles me deixava ainda mais nervosa.”

Neha foi pisando fundo até o posto de enfermagem e, em alto e péssimo tom, reclamou da falta de coordenação com o médico e pediu que, das próximas vezes, os funcionários só colocassem um paciente na sala quando o especialista já estivesse a postos, para evitar transtorno a todos os demais, por horas a fio. 

Ela ainda estava no meio do discurso quando o cirurgião de coluna chegou, mas foi tempo suficiente para que S.N. e os familiares dele assistissem, incrédulos, ao show de raiva da médica.

Nas semanas seguintes, Neha fez de tudo para terminar os curativos antes que S.N. chegasse. Envergonhada, preferia nunca mais encontrá-lo, mas, quanto mais corria, mais vezes cruzava com ele na sala de espera ou nas proximidades da sala de curativos. Desnecessário dizer que o olhar da família resumia o que sentiam por aquela médica de conduta fria e desagradável.

Um mês depois, no entanto, quando Neha já tinha quase esquecido o episódio, o cirurgião de coluna pediu que ela avaliasse um paciente que estava com problemas na ferida cirúrgica. Quando o paciente entrou na sala, era o sr. S.N.

Ele e os parentes ficaram horrorizados ao vê-la. Com grande relutância, deixaram que Neha avaliasse o ferimento, pelo qual vazava líquor. S.N. parecia muito mais fraco e exausto. Além da ferida, estava com pneumonia e diabetes descontrolada.

No prontuário, Neha descobriu que ele tinha 83 anos e havia operado um tumor na altura da nona vértebra torácica com a esperança de que voltasse a andar. Se o tumor fosse maligno, a família já havia decidido: nenhuma terapia adjuvante deveria seria autorizada.

O cirurgião da coluna propôs que S.N. fosse internado para observação do vazamento do líquor e tratamento da pneumonia, até que pudesse ser operado de novo. Até lá, Neha seria a responsável pelos curativos diários.

O nervosismo era palpável de ambos os lados! S.N. e os parentes não estavam confortáveis em serem atendidos por Neha, que também não estava muito interessada em tratar uma família que não confiava nela. Mas não havia muita saída.

Nos primeiros dois dias, a médica visitava o paciente, fazia o curativo, preenchia a ficha e saía do quarto. Neha queria falar com S.N., mas ele não tinha fôlego, e as tentativas de estabelecer uma conversa com os acompanhantes haviam sido em vão.

Na terceira visita, ele estava melhor. Quando ela lhe deu boa tarde, e ele abriu a boca para responder, Neha notou que a língua do paciente estava seca. Olhou a bolsa coletora e viu a urina escura. “O sr. está com sede? Quer água?”, ela perguntou. E ele confirmou com a cabeça. S.N. tirou de forma ansiosa o copo das mãos da médica, bebeu tudo, pediu mais e, com dificuldade, quebrou o silêncio. 

“Como você sabia que eu queria água? Vai se tornar uma boa médica um dia, porque sabe ler a mente dos pacientes. Eu já estava com sede há algum tempo, mas só me colocam na inalação”, disse ele. Foi o primeiro diálogo entre os dois.

Na quarta visita, S.N. havia melhorado um pouco mais e falou com Neha da família, da vida, da profissão, da paraplegia e da luta contra o câncer. Na visita seguinte, emocionado, contou que um amigo de infância estava chegando para visitá-lo e narrou em detalhes o cardápio que a família tinha preparado. Todos ali já estavam confortáveis com a presença dela, que já se sentia entusiasmada em cuidar daquele paciente.

De repente, S.N. piorou, entrou em suporte ventilatório e, para a decepção de Neha, quando ela chegou de manhã, os filhos já o haviam levado. Deixaram um bilhete no posto de enfermagem: “Obrigado, doutora, por todos os seus esforços, mas ele quer passar os últimos dias em casa”.

“Não sei quanto tempo ele sobreviveu, mas o copo de água que quebrou o gelo entre nós dois vai ficar na minha memória”, diz Neha. “Hoje eu percebo como um ato tão pequeno e espontâneo pode mudar a nossa relação com um paciente. Porque há momentos em que não temos a cura, mas podemos aliviar um pouco a dor do outro e ajudá-lo a passar um pouco melhor seus últimos dias.”

A história de Neha e de S.N. está publicada no Indian Journal of Cancer. Ganhou status de artigo científico. Tem em comum com as pesquisas de ponta a necessidade de ser lida em todas as línguas.

Neha conta que hoje se pergunta qual teria sido a resposta dela se tivesse bebido um “copo de água” quando estava explodindo de raiva, no dia que viu S.N. pela primeira vez, ocupando a sala de curativos.

Poderia ter se controlado? Ter sido mais gentil com a equipe de enfermagem? Ter evitado a guerra fria que se estabeleceu com aquela família? Ter tornado tudo aquilo menos estressante, inclusive para ela?

A médica indiana termina o artigo lembrando uma frase de Leo Buscaglia, o escritor que criou uma disciplina sobre o amor na Universidade do Sul da Califórnia. “Muitas vezes subestimamos o poder de um toque, um sorriso, uma palavra gentil, um ouvido atento, um elogio honesto ou de um pequeno ato de cuidado, todos com potencial para mudar uma vida”, dizia Buscaglia.

Aos leitores fica o convite para que tomem mais copos de água nesses tempos de intolerância. Aos profissionais de saúde em qualquer área, que relembrem o conselho hipocrático que define a medicina: “Curar algumas vezes, tratar frequentemente, consolar sempre”.

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