Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Silvio Almeida

Destruir a ciência é essencial para que o bolsonarismo capture o Estado

Tentativa das testemunhas e dos congressistas alinhados com o governo de direcionar CPI para discussões rasas sobre metodologia científica é manobra diversionista

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Confesso que sinto particular regozijo quando nas audiências da CPI sobre a pandemia vejo negacionistas serem expostos.

Adoro quando a burrice orgulhosa —geralmente autoritária e covarde— é publicamente desmascarada. Mas o fato é que a CPI não é feita para acomodar meus impulsos e, por mais que me doa dizer, sendo eu um professor de filosofia do direito, não é o lugar apropriado para um debate conceitual sobre a ciência. Isso não quer dizer que ciência e política não se relacionem.

Com efeito, a relação entre ciência e poder é tema clássico da filosofia, pelo menos desde que Francis Bacon afirmou no século 17 que “saber é poder”. Nessa mesma trilha, séculos mais tarde Michel Foucault apontara o saber, inclusive o científico, como “uma prática discursiva” que “se define pelas possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso” ou, em outras palavras, pelas relações de poder.

O filósofo Ernst Cassirer, em outra chave, ressalta o caráter simbólico da ciência, que não é mera descrição da natureza, mas construção e síntese forjadas no campo da cultura.

E Dominique Lecourt, em “Filosofia das Ciências”, alerta para o fato de que “a ciência jamais decide por si mesma sobre o sentido de suas aplicações” e que “é a responsabilidade dos seres humanos que se encontra engajada em cada decisão de elaborar e aplicar os conhecimentos novos”.

A mim me parece que um debate de tamanha envergadura supera e muito a urgência e os fins iminentemente investigativos de uma CPI.

Todavia, dizer que uma CPI não se presta a discutir a arquitetura do pensamento científico não é o mesmo que dizer que é possível desprezar a ciência na investigação da responsabilidade de agentes públicos por
atos praticados na pandemia.

Uma coisa é discutir o que é ciência, papel que, insistimos, é grande demais para a competência constitucionalmente limitada de uma CPI; outra é analisar o necessário fundamento científico dos atos administrativos praticados por agentes públicos, algo que é mister de uma CPI.

Atos administrativos são informados pelo princípio da razoabilidade, que determina que a administração pública se conduza por critérios racionais.

Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello “não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas —e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis—, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstância que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada”.

É “desarrazoada”, “bizarra” e “incoerente” a prática de agente público que sabota a compra de vacinas, não determina o isolamento social, promove medicamentos sem eficácia comprovada e, ao que tudo indica, apostou em uma pretensa estratégia de “imunidade de rebanho”. No contexto de uma pandemia, são racionais, para fins jurídico-administrativos, os critérios estabelecidos pelas instituições responsáveis pela produção e difusão da ciência, especialmente na saúde. Fora disso, é desvio de poder.

A tentativa das testemunhas e dos congressistas alinhados com o governo de direcionar a CPI para discussões rasas sobre metodologia científica e autonomia médica é manobra diversionista que tem como intenção fazer aquilo que o bolsonarismo precisa para existir: demolir toda e qualquer mediação institucional que imponha limites ao projeto de captura do Estado em prol de interesses particulares.

A delinquência que caracteriza o bolsonarismo tem como base a produção sistemática da mentira. Por esse motivo o repúdio à ciência e, particularmente, às instituições científicas, é uma condição essencial à continuidade das práticas criminosas das quais alguns integrantes do governo federal são acusados.

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