Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Silvio Almeida
Descrição de chapéu Folhajus Rússia

A guerra, as motivações concretas e o humanismo abstrato

Guerras revelam o processo de decadência de uma ideia estreita de humanidade

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O que se pode dizer diante de uma guerra e suas tragédias?

Falar sobre a invasão do território da Ucrânia pela Rússia não é tarefa simples, mesmo para os mais experientes e sofisticados analistas.

O peso geopolítico do conflito, a velocidade das informações e a ampla aceitação por parte da mídia de reflexões maniqueístas faz com que os esforços para captar as complexidades do evento sejam muitas vezes vistos como tentativas de justificação da guerra.

Refugiados tentam entrar na Polônia em meio à guerra na Ucrânia - Wojtek Radwanski-28.fev.22/AFP

A ocultação das múltiplas motivações da guerra acaba por ser uma aposta na impotência política e, por consequência, na inevitabilidade do sofrimento humano. É preciso dizer que há uma economia política que organiza este conflito, e que esta guerra é, essencialmente, contra os pobres e contra os trabalhadores. São em geral estas pessoas que se tornam refugiadas, que são levadas a atirar em estranhos e que tem de um dia para o outro suas vidas destroçadas. O que está realmente em jogo aqui é o expansionismo capitalista, a concorrência entre Estados e os intrincados conflitos de classe que ocorrem em nível nacional e internacional.

Termos como "loucura", "descontrole" ou "senilidade" nada explicam sobre a destruição de um país e de milhares de vidas. A crueldade está em jogar no campo do irracional um evento que está diretamente ligado à lógica destrutiva da mercadoria que governa o nosso mundo, uma lógica que se ampara no poderio militar.

Todos os governos e seus respectivos líderes estão bastante cientes do horror que estão promovendo e das consequências funestas de seus atos sobre populações civis.

Tampouco é correto considerar esta guerra como mera continuidade da antiga Guerra Fria. Esta guerra é uma guerra do presente, da crise em que todos estamos metidos e das disputas geopolíticas contemporâneas. Não fossem tempos tão confusos talvez fosse desnecessário lembrar o óbvio: a Rússia não é a União Soviética, Biden não é Roosevelt e, muito menos, Putin é Lênin.

Assim como é muito atual o espetáculo de racismo e humanismo seletivo demonstrado não apenas no cenário de guerra —em que se evidencia a diferença no tratamento dado a refugiados brancos e não brancos— mas também na cobertura racista da imprensa mundial. Esta guerra, como sói acontecer em conflagrações deste tipo, destampou a fossa onde o mundo dito "civilizado" jogou alguns dos piores dejetos que a humanidade já produziu.

"Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma civilização moribunda", diz Aimé Cesaire em "Discurso sobre o colonialismo". É uma "decadence sans elegance", tão bem refletida em grande parte da cobertura jornalística, que já não consegue disfarçar seu desprezo por pessoas que não têm olhos azuis ou a surpresa pelo fato de que sejam pessoas brancas a se matar no sagrado solo da Europa. Daí seguem-se explicações baseadas em delírios de "orientalismo", descrições fantasiosas de "choque de civilizações" e o mais descarado racismo.

Jean-Paul Sartre, em prefácio escrito para "Condenados da Terra", de Frantz Fanon, nos alerta que Europa e Estados Unidos (que ele chama de "monstro supereuropeu") teriam que encarar "o inesperado espetáculo do strip-tease de seu humanismo". Um "humanismo racista", vez que, segundo o filósofo, "o europeu não pôde fazer-se homem senão fabricando escravos e monstros".

Já Aimé Cesaire constata que o que não se perdoa ao nazista "não é seu crime contra o homem, mas contra o homem branco" e "o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que só árabes da Argélia, "coolies" da Índia e negros da África estavam subordinados".

E termina Cesaire dizendo que: "nunca o Ocidente, no próprio momento em que mais se deleita com esta palavra, esteve tão longe de poder assumir as exigências de um humanismo verdadeiro: um humanismo à medida do mundo".

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