Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Argentina não se preparou bem para a dengue, resta saber como será com o coronavírus

O que causa indignação é que governo estava ciente do problema da dengue

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O coronavírus já está na Argentina, e há quatro casos confirmados. Sem querer minimizar a tragédia da epidemia no mundo, aqui, por ora, os efeitos são pequenos.

Isso não quer dizer que o panorama não mude, mas o fato é que os argentinos estão em pânico. Andam de máscaras no metrô, já falta álcool gel nas farmácias, e os noticiários têm adotado tom apocalíptico.

 
O que mais me surpreende, porém, é que não escuto debates, não vejo campanhas do governo nem boas reportagens sobre o verdadeiro flagelo deste verão às beiras do Rio da Prata: a dengue.
Tela "Um Episódio da Febre Amarela em Buenos Aires", do artista uruguaio Juan Manuel Blanes
Tela "Um Episódio da Febre Amarela em Buenos Aires", do artista uruguaio Juan Manuel Blanes - Museu Nacional de Artes Visuais de Montevidéu

Desde o fim de 2019 até fevereiro foram confirmados mais de mil casos, a maioria dos quais nos bairros humildes das grandes cidades e 165 nos subúrbios da capital —o triplo em relação ao ano passado.

O que causa indignação é que o governo estava ciente do problema. A Organização Mundial da Saúde havia feito uma advertência de que a dengue seria um problema maior no país em 2020 por conta da mudança climática.

Temos tido um verão com temperaturas mu ito altas e aumento dos focos de reprodução do mosquito transmissor, o Aedes aegypti.

Há três mortos. Um deles causou maior comoção mediática: uma mulher de 24 anos, que estava grávida.

Na hora em que vi essa notícia, lembrei-me de outra imagem, essa histórica, mas com paralelos com a atualidade.

É a tela "Um Episódio da Febre Amarela em Buenos Aires", do artista uruguaio Juan Manuel Blanes, que retrata uma cena da terrível epidemia da doença em 1871.

Nela, um bebê tenta reanimar a mãe, morta no meio da sala de uma casa popular. Da porta, a observam, com horror, dois homens bem-vestidos, médicos e autoridades que chegaram tarde demais.

Na epidemia de febre amarela de 1871, morreram 8% dos habitantes de Buenos Aires, e foi necessário construir um cemitério novo, o de Chacarita, que, por coincidência, fica a poucas quadras de onde escrevo esta coluna.

 

Na época, a capital da Argentina não possuía rede de esgotos, estrutura sanitária e hospitais suficientes para atender a uma população crescente.

 
As autoridades, sem saber o que fazer com o mosquito que hoje causa a dengue em larga escala, colocaram o foco nos bairros pobres.

Em casas apertadas, os chamados "conventillos", viviam várias famílias de imigrantes, que eram a mão de obra da cidade, e os negros.

Cercaram quarteirões para que os infectados fossem impedidos de ir aos bairros ricos da cidade. Entraram em suas casas e queimaram seus pertences no meio da rua.

De 1871 para cá, a cidade teve sua infraestrutura bastante melhorada. Mas as causas de propagação da dengue em 2020 são as mesmas da febre amarela naquela época, ainda que em menor escala: faltam redes de esgotos e saneamento em bairros humildes e boa atenção nos hospitais públicos.

É certo que por racismo não se isolam de forma aberta os doentes, mas o descaso com que se trata a dengue como uma "doença de pobre" é igual ao da época da febre amarela: carregada de preconceito.

Sobre o coronavírus, espera-se apenas que as autoridades sanitárias estejam mais preparadas do que estão para as doenças causadas por esse insistente mosquito.

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