Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Descrição de chapéu América Latina

As mulheres que nunca se esquecerão de Fujimori

Ex-ditador morto no dia 11 ficou sem responder por plano de esterilização sem consentimento de milhares de peruanas

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Foi apenas depois da terceira gestação, cujas complicações a fizeram ir às pressas para um hospital de Piura, numa madrugada calorosa no norte do Peru, em 1996, que Victoria Vigo, 32, pôde falar.

Já corria o ano de 2014 e, diferentemente da maioria dos atendimentos noturnos feitos naquela localidade anos atrás, desta vez havia jornalistas regionais. Os casos das mulheres esterilizadas contra a própria vontade já tinham virado notícia dentro e fora do país.

Mulher com máscara e chapéu é vista sentada em uma mesa
Victoria Vigo, vítima de esterelização forçada no Peru - Cris Bouroncle /AFP

Vigo havia perdido o bebê e pedia explicações. "Eu tinha apenas sentido um mal-estar e procurei o pronto-socorro. Quando acordei, o médico me disse que complicações na gravidez o fizeram encerrá-la e promover o ligamento de trompas. Fiquei infértil", afirmou à Folha na ocasião, embora não conseguisse ainda mensurar o tamanho da tragédia para ela, que tanto aguardava essa criança.

Ela é professora e além do quéchua —praticamente o único idioma conhecido da maioria das mulheres vítimas desses procedimentos— arriscava o espanhol. E foi assim que os peruanos, e principalmente as peruanas, tiveram acesso ao que verdadeiramente ocorria nos povoados distantes dos centros urbanos.

A história de Vigo é semelhante às de mais de 300 mil mulheres que assim despertaram e resolveram falar de procedimentos médicos ou cirúrgicos em lugares remotos do país. Elas não imaginavam que seus casos eram parte de uma rede maior.

Vigo encorajou muitas outras mulheres a falar, como é comum nessas ocorrências. E, até o fim dos anos 1990, a maioria dos casos estava registrada. O documento foi entregue à Procuradoria-Geral do país e apresentado como prova da acusação de que o governo Alberto Fujimori, morto na última quarta-feira (11) após o tratamento de câncer na língua, havia estabelecido metas de esterilizações forçadas das quais tinham sido vítimas pelo menos 350 mil de mulheres em idade fértil.

Ao projeto, Fujimori havia dado o pomposo nome de Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planificação Familiar. Por incrível que pareça, tal avanço sobre os direitos humanos das mulheres foi aplaudido por parte da população que votou nele sob o argumento de que a solução era um dos únicos meios para se combater a pobreza.

Fujimori nunca respondeu por esse processo e, quando ele ganhou o benefício de cumprir em casa o resto de prisão que ficou devendo, nunca o caso das esterilizadas foi levado em consideração. Agora, com sua morte, é mais uma injustiça contra as mulheres que fica sem solução. Porém, registrado para a memória.

Algumas das mulheres esterilizadas disseram à Folha que seus filhos sofrem ataques nas escolas e que perderam contato com amigos. "Elas pensam que ligamos as trompas para dar para qualquer um. Nossos amigos nos chamam de putas."

A prática foi condenada pela Human Rights Watch, Anistia Internacional e várias outras organizações que atuam com direitos humanos. Nenhuma das famílias recebeu a indenização merecida.

É de se esperar, ao menos, que fique arquivada no rol das maldades para que os ditadores de hoje e de amanhã não repitam. E a sociedade peruana continua com a dívida de dar suporte às mulheres vítimas do processo.

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