O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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Pimenta no Hegel dos outros

Heloísa, talvez você não seja a diaba libertina que gostaria, mas pode simplesmente ir fundo para o desfrute anal

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Heloísa, 32, é feminista e doutora em filosofia. Garante que sua mente é aberta, que sua vida sexual é plena e ativa e me escreve com o seguinte questionamento. "Se quero, por que não consigo fazer sexo anal com meu namorado? Quais implicações psicanalíticas para querer e não conseguir?"

Quando eu tinha uns 20 e poucos anos, cismei que precisava morar um tempo em Nova York e comecei a guardar dinheiro. Eu trabalhava em um lugar saturado de gente esnobe e metida, e todo mundo, claro, já tinha ido para Nova York várias vezes.

Fiquei obsessiva. Sonhava com a cidade toda semana. Assistia a todas as séries e filmes que se passavam lá. Colecionava dicas de lojas, livrarias, restaurantes, cinemas, passeios. Voltei a estudar inglês. Arrumei um namorado à distância que fazia mestrado na Universidade Columbia. Tirei visto, renovei o passaporte. Quando finalmente comprei a passagem e arrumei onde ficar, comecei a ter uma diarreia absurda e precisei remarcar a viagem.

Vista da cidade de Nova York, à noite, mostra prédios altos e iluminados. À direita, há a Estátua da Liberdade e, à esquerda, fogos de artifício coloridos são vistos no céu noturno
Com fogos de artifício, Nova York celebra taxas de vacinação contra a Covid-19 em junho de 2021 - Angela Weiss - 15.jun.2021/AFP

Dali a algumas semanas, diarreia absurda de novo, remarquei. Dali a uns meses, diarreia, remarquei. Dali a outros meses, crises horríveis de dores de estômago, espasmos terríveis no intestino. Desisti da viagem e do namorado. Entrei em depressão. Mas se eu queria tanto, por que eu simplesmente não conseguia ir?

Antes da história continuar, quero dizer que acho sim muito válido comparar o epicentro do capitalismo com um cu. E você, Heloísa, já vai entender meu ponto. Ou não vai, mas eu terei tentado. Assim como você.

Eu já tinha feito algumas viagens internacionais, mas nunca movida por um "eu preciso ir para deixar de ser caipira, brega e pobre". E este era o problema.

Isso que queria tanto em mim, ao mesmo tempo, anulava coisas importantes sobre o que eu era. Queria acordar fashion, moderna, falando um inglês impecável e ir para Nova York. No entanto, o que eu precisava, tão e somente, era acordar caipira, brega, pobre e, mesmo assim, mesmo deslumbrada e assustada, ir para Nova York. Ou não ir, e entender que, "no fundo" (olha aí, as nossas histórias se encontrando de novo!) eu nem queria tanto, e tudo bem. Mas eu precisei de dez anos de análise para chegar a essa conclusão. Depois, com trinta e poucos anos, sem nenhum drama e caganeira (mentira), finalmente conheci e pude passar uma temporada em Nova York.

Heloísa começou dizendo que é feminista, mente aberta, vida sexual ativa e livre, doutora em filosofia. É como se dissesse: "Eu tenho tudo para conseguir liberar a porta dos fundos, contudo...". Contudo, o que está faltando é justamente se deixar ir com tudo. Heloísa, talvez você não seja a diaba libertina que gostaria. Talvez você precise simplesmente levar a caipira, temerosa e culpada Heloísa para o desfrute anal. Não que eu tenha, infelizmente, experiência no assunto.

Nós, pessoas angustiadas vivendo na civilidade, acreditamos que precisa de um tanto de moralidade, limpeza, controle e culpa para ser aceito em sociedade. Por isso, acredito, para muita gente é difícil relaxar quando o assunto é sexo anal. Todavia, justamente por todos os motivos acima relacionados, é que a erogenização da área é indiscutivelmente um tema.


Tati Bernardi responde às perguntas mais inusitadas e aos comentários mais estranhos de seus leitores. Quer participar da coluna O Pior da Semana? Envie sua mensagem para tati.bernardi@grupofolha.com.br

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