O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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Julia não acredita em novos dias

Ela me escreve para dizer que, desde que se reconhece como um ser pensante, odeia dormir

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Julia, acho interessante receber sua carta justo nesta manhã de sexta-feira, após ter capotado por ininterruptas doze horas. Eu amo dormir. Para mim, dormir é melhor do que comer farofa com arroz que queimou na panela, melhor do que comer seguidamente quinze daquelas balinhas quadradas de caramelo de leite, melhor do que se vingar bem gostoso de alguém que te fez perder o sono e melhor até do que a Praia do Espelho na baixa temporada.

Julia discorda. Acha que dormir não faz o menor sentido: "Eu não sei como a gente comprou essa ideia!". Insiste que sonhar não muda a vida em nada. Quem já estava desempregado, triste ou devendo dinheiro vai acordar no dia seguinte e "continuar do exato lugar onde parou".

Julia, você é uma poeta, uma filósofa, uma escritora. A pessimista insone mais divertida que já me escreveu. Contudo, estou preocupada com a sua saúde. A pandemia que mais me preocupa no momento é a das doenças autoimunes –e não dormir é quase como se você comprasse dez ingressos para a área VIP de um hipotireoidismo, uma neuropatia ou mesmo uma diabetes.

Apesar de amar dormir, eu sou pilhadíssima. E durmo mal e pouco. Acho curioso quem se droga para se sentir mais animadão e agitado. Adoraria que existisse uma droga que transformasse minha corrente sanguínea no plácido riacho de um spa zen. Tem várias dessas drogas na farmácia, sei muito bem, mas evito ao máximo, pois preciso do meu cérebro tinindo para trabalhar.

Acaba que eu sempre descanso apenas umas seis, sete horas por noite. Vou para a cama pensando em trabalho, desperto umas quatro vezes no meio da noite pensando em trabalho (às vezes até levanto, trabalho, depois volto a dormir) e já acordo com aquela sensação horrível de um elevador de bile congelada, que vai do meu ânus ao meu cerebelo, me dizendo: você está atrasada! Você não vai fechar as contas do mês! Você ainda não é ninguém! Vão fazer antes e mais e melhor!

E vivo abatida, com dor no corpo e me controlando para não cutucar com dureza a omoplata de qualquer sujeito que faça algo devagar na minha frente. E isso não é vida, Julia. Acho que estou me transformando numa pessoa meio grossa, meio insuportável, justamente porque não descanso.

Fotografia colorida mostra mulher deitada em sua cama, no escuro, com os olhos abertos e a mão sobre a cabeça, como se estivesse com muita dificuldade para dormir
Burdun/Adobe Stock

Esta semana foi muito chata, pesada, cheia de gente desaplaudida querendo encrenca, e eu percebi que, se não me retirasse dos meus pesadelos despertos por pelo menos metade de um dia, a soma explosiva das minhas quatro casas em áries com a minha bipolaridade leve com o meu TDAH (recém-diagnosticado pelo meu amigo Janones) faria de mim uma criminosa.

Então me obriguei a deitar às 21h e dormir por doze horas. Doze horas. E discordo de você que acordei com os mesmos problemas do dia anterior. Nada disso. Eu tinha os problemas do dia anterior e, porque dormi além do que podia, mais uns 34 novos problemas.

Julia ouviu de sua amiga (outra poeta, filósofa, escritora) que ela não dorme porque não acredita em dias novos. "Às vezes (sempre) eu tenho essa sensação bizarra de que estou vivendo o mesmo dia desde que nasci. Sem data, sem dividir o tempo em meses ou anos. Eu odeio essas pequenas sonecas que interrompem o infinito de um mesmo dia e me iludem, me levando a pensar alguma coisa acabou para que outra pudesse começar".

Julia, lendo você, me lembrei da minha fobia de Ano Novo. Eu sempre choro, pensando que todo mundo vai morrer, que as pessoas que saíram da cidade para curtir as férias nunca mais vão voltar e ficarei sozinha por toda a eternidade com minha roupinha branca. Sinto ânsia de vômito, pânico. Acho a mudança de ano tristíssima. Não porque eu não acredite em dias novos, mas porque quase sempre estou apegadíssima aos dias velhos. Eu acredito demais nos dias velhos porque neles ainda somos jovens. A finitude assusta pacas.


Tati Bernardi responde às perguntas mais inusitadas e aos comentários mais estranhos de seus leitores. Quer participar da coluna O Pior da Semana? Envie sua mensagem para tati.bernardo@grupofolha.com.br

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