O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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Como sobreviver sendo uma emocionada?

Mariana pergunta como viver com tantos sentimentos num mundo cheio de gente metida a cool

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Mariana me escreve com a específica pergunta que me assola desde a mais tenra adolescência: "Como sobreviver sendo uma emocionada?"

Tal questionamento me lembra a masterclass sensacional a que assisti ano passado com o escritor David Sedaris, conhecido por sua obra autodepreciativa. Ele começa a primeira aula indagando o que um sujeito que não é escritor faz com as dores e os perrengues do seu dia.

David conta que, por mais triste e puto que tenha ficado em situações desagradáveis, sempre celebrou "em algum lugar de sua psique" todos os foras profissionais e amorosos que levou. O autor confessa que uma simples queda no meio da rua já foi motivo para que ele finalmente retomasse a escrita de uma crônica, livro ou roteiro.

"Eu torço para que muitas coisas deem errado no meu dia, assim eu nunca deixo de ter motivos para escrever.", diz (Sedaris não deve ter dito exatamente essa frase, mas ousei colocar entre aspas a minha lembrança).

Em meu micro-mundo, me reconheci profundamente no fascínio do artista em ser (ou fazer de tudo para se tornar) um personagem. Além do prazer que tenho em me esculachar em praça pública, expor meus defeitos sem efeito ressaca e convidar a todos para assistir as minhas quedas, já extraí muitas tentativas literárias (para o bem e para o mal dos que me cercam) dos meus piores momentos lidando com amigos, companheiros e familiares

Meus leitores, estes sim valentes, sobreviventes de um trabalho tão autorreferente e histérico, sabem que levo tranquilamente muitos desaforos para casa. Apenas porque é na minha casa que está meu computador e a possibilidade de, enfim, esquadrinhar uma cena pela linguagem, para que ela ganhe uma forma possível e deixe de ser um pica-pau fantasmagórico cutucando meu fígado.

Ilustração colorida mostra coração rosa sendo mordido e perseguido por pessoas
Mariza Dias Costa/Folhapress

Quando eu brigava com uma amiga no ginásio escolar e depois, enjoada, morta, assassinada pela dor suprema da solidão, chorava tanto que lotava o cabelo da coleguinha de muco (e pedia perdão com exclamações teatrais, a ponto de juntar um grupinho de bullying para me massacrar) eu sabia que precisaria criar algum tipo de casca protetora para meu jovem corpinho em carne viva. A ironia me pareceu a única saída.

Se você me vir tirando muito sarro da cara de alguma pessoa que aparentemente pareço gostar, talvez eu a ame profundamente. O núcleo duro da família da minha mãe era formado por pessoas que só suportavam conviver umas com as outras porque tanto sentimento podia ser abrandado por deboche. Estavam certos? Nós, os Bernardi, temos cabeças boas? É fácil conviver comigo? Não, não e não. Mas é o que deu para fazer até o ano da graça de 2023.

Contudo, fico aqui pensando, Mariana, que na verdade o que você pergunta é como ser uma mulher emocionada em um mundo com tanta gente metida a cool, confere?

Para começar, fuja de tais pessoas: 1- discretíssimas; 2- que assistem a muitas modalidades de esporte; 3- que moram 15 anos em outro país e não são minimamente angustiadas; 4- que olham para você realmente assustadas —e não levemente segurando o riso —enquanto você a entretém com toda a sua aptidão para o drama e 5- que trabalhe no mercado financeiro.

Uma amiga de longa data começou a namorar uma figura pública da televisão e resolveu, para protegê-lo (ou provavelmente porque lhe foi exigido assim), nunca mais contar nada, nadinha mesmo, sobre sua vida íntima ou familiar. NADA. Eu almoçava com ela, vomitava meu ser inteirinho e quando chegava a sua vez, ela me dava dicas sobre culinária mexicana ou a programação teatral do Sesc Pinheiros. Foi se tornando, cada vez mais, a Ilustrada ou o caderno de Turismo. O sujeito impessoal é o sujeito mais chato que existe.

Me ajuda muitíssimo também ler livros, ouvir músicas ou ver filmes e séries com protagonistas emocionadíssimos. O pertencimento nos embala, amamenta e depois devolve à selva de pedra cravejada por seres malignos e suas securas.

Recentemente, retornei ao bom e velho Jeff Buckley em seu disco "Grace". Antony and the Johnsons, Adele e Nina Simone nunca saíram da minha playlist. Ontem vi o belíssimo filme "Supernova", com Colin Firth e Stanley Tucci, e a genial série "Somebody Somewhere" com Bridget Everett.

Sempre retorno ao Timothée Chalamet em "Call Me By Your Name". Já vi a série "Please Like Me" umas duzentas vezes e leio o livro "Meus Tempos de Ansiedade", de Scott Stossel, sempre que preciso me certificar de que sim, "não está tudo bem", mas não sou a única. Mais da metade das minhas dicas obviamente são gays.

Para encerrar, vou ter que recorrer ao tema que é um grande inimigo da crônica erudita. Um escritor sério não deveria acreditar em signos, muito pior escrever sobre eles. Mas eu detesto toda gente séria de toda a espécie e serei sempre uma trouxa emocionada, então te digo: fuja de parceiros aquarianos. Sei que é difícil, quase impossível, mas vale ao menos lutar a boa luta contra esses tipos perigosíssimos para moças que podem passar dois anos inteiros chorando embaladas pela linda fase do cantor Silva, antes dele regravar axé.

Bom também evitar virginianos, pessoas que vão te amar loucamente caso o objetivo "paixão avassaladora" esteja condizente com sua planilha Excel para aquele momento. Ignoraria capricornianos por motivos óbvios. Ignoraria sagitarianos, porque não levo a sério pessoas adultas que poderiam acampar a qualquer momento (e librianos porque poderiam flertar a qualquer momento). Não apostaria tampouco em taurinos, é o meu signo e sei bem que jamais vou gostar de alguém como gosto de bons hotéis, de dormir ou de estar certa. Não perderia meu tempo com leoninos, porque "como ele vai te notar se está mais preocupado em parar o restaurante enquanto caminha"? O namorado mais desgraçado que eu tive foi de câncer e se ele tinha algum desejo de ser "familinha" era com metade da cidade. Mas, se um ariano ou pisciano bater à sua porta, tão cagado quanto você, aí sim, querida, a chance de dar errado é imensa.

Em suma, Mariana, vai dar sempre tudo meio errado. E o que não escritores fazem com isso?


Tem algum questionamento inusitado, uma reflexão incomum ou um caso insólito para contar? Participe da coluna O Pior da Semana enviando sua mensagem para tati.bernardi@grupofolha.com.br

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