O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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Quando fui mais feliz

Afonso pergunta quais foram os melhores dias e momentos da minha vida

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Afonso me escreve pedindo que eu cite os momentos em que fui mais feliz na vida.

Ganhei um campeonato de massinha com a temática "Natal" quando tinha seis anos. A professora chamou todos os adultos da escola e todos ficaram chocados: "Como ela fez isso com essa idade?". A professora falou que minha mãe devia me levar ao Fantástico, que eu deveria expor minha arte em algum museu. Foi um dos dias mais felizes da minha infância.

Aos doze anos, eu, que era somente esquisita e invisível, subi em um palco de teatro, para uma espécie de show de talentos, e imitei a professora Áurea de álgebra chacoalhando suas pulseiras e rodopiando em frente a lousa. Imitei os professores de biologia, física e de educação física. O vômito nervoso subiu três vezes até minha boca, mas disfarcei e cheguei até o final da apresentação. Quando terminei, uns 200 alunos começaram a me aplaudir de pé e vi alguns dos professores de quem eu havia acabado de caçoar com a coluna dobrada de tanto rir. As crianças riam, riam, riam. Aplaudiam, aplaudiam, aplaudiam. Foi o dia mais feliz da minha pré-adolescência.


Aos quatorze anos, fui para o Vale do Sol, em Serra Negra, e lá tinha um rapaz alto, chamado Carlos Eduardo, e ele me parecia a amostragem mundial mais bela e atlética de um garoto até aquela data. Tomei consecutivos banhos chorando, durante todo o verão, porque uma garota como eu jamais seria notada por um garoto como ele. Não conseguia comer ou dormir.

No último dia das férias, ele e seus ombros largos e suas coxas grossas me levaram para um corredor escuro que descia para os chalés e nos agarramos; foi meu primeiro beijo para valer. Ele estava cheiroso, era tímido e doce e piadista e forte. Namoramos por três anos e acho que ele não sabe, mas me salvou. Antes, triste, ansiosa e impopular. Depois, amada, ansiosa e tarada. Nunca mais eu me acharia uma bosta.

Aos 19 anos, consegui um estágio na W/Brasil e por lá fiquei uns quatro anos. Nunca mais, em nenhum emprego, em nenhum momento da minha vida, fui tão deslumbrada, dedicada e obcecada profissionalmente como neste período. Eu saía todos os dias de madrugada e lá fiz planos para tudo que sou e tenho hoje. Já sabia que não duraria muito tempo como redatora, porque o que eu queria mesmo era escrever literatura, mas aquele ambiente me possibilitou sonhar alto e grande e infinito. Eu me sentia em um filme. Podem demonizar o dinheiro e o glamour, mas aos 20 e poucos anos o que vivi em meu primeiro emprego foi uma paixão avassaladora e eterna pela criatividade, o humor e o poder. Uma jovem sem ambição sempre me causa pena.

Mulher com braço esticado segura espelho com uma cara sorridente
Catarina Pignato


Aos 24 anos fui insuportavelmente feliz, quando passei alguns dias inteiros andando por Firenze, falando um italiano inventado, com um namorado que eu amava exageradamente, experimentando comidas de qualquer muquifo que eram as melhores comidas da vida toda. Pobrinha de tudo, novinha de tudo, fechando cadeados em pontes com promessas de amor eterno. Tirando fotos de um secador de cabelo laranja de um quarto vagabundo, porque me sentia em um hotel cinco estrelas.

Aos 30 e alguma coisa, lancei um filme que fez quase quatro milhões de bilheteria e lancei um livro que ficou entre os cinco mais vendidos do país por semanas. Talvez não as duas coisas no mesmo ano, mas parece que foi no mesmo dia. Foi como experimentar algo alucinógeno e único e intenso e passar o resto da vida tentando voltar para essa primeira experiência com o sucesso. Nunca mais me senti assim.

Aos 37 anos fiz minha primeira aula de psicanálise, no Sedes, com a professora Daniela. Tive a sensação de que passei uma vida toda tentando chegar até aquela classe, tentando chegar até aqueles textos. Nada que eu havia estudado ou lido até então havia chegado perto do impacto que eu estava sentindo. Foi como desencanar de alguma maratona idiota, no frio, e tomar um chá, me cobrir, descansar.

Aos 39 anos tive uma filha. Na sala do parto, escreveram na lousa "Rita". Ler seu nome me causou mais emoção do que os nove meses te esperando. Do que os 39 anos te esperando. Ler minha filha.

E então, com a sua chegada, começaram as violentas pirações olfativas. O cheiro da cabeça da minha filha, o cheiro dela saindo da aula de capoeira e entrando no carro, o cheiro dos seus casacos, o cheiro das meias suadas, o bafinho pela manhã, o cheiro de chiclete das sandálias, o cheiro que ela deixa na rede de balanço, o cheiro que tinham aos mãozinhas suadas e fechadinhas dela quando era bebezinha, o cheiro da sua gaveta de pijamas de unicórnios, o cheiro do cabelo ainda úmido que ela enfia na minha cara para provar que já está seco, o cheiro do seu travesseiro, o cheiro de algodão doce em seu pescoço. Qualquer cheiro dela, do dia que nasceu até esse segundo.

Piscina quente, voltar para casa, praia fora de temporada, queijo meia cura, homem bonito com barba citando Deleuze, a primeira manhã da garganta sem dor após uma gripe, a voz do meu analista, Lula subindo a rampa, meu grupo de melhores amigas, todos os dias, juntas, do jeito que dá. Meus pais brincando com minha filha. O André tentando se livrar da imensa encrenca que eu sou e não conseguindo.


Tem algum questionamento inusitado, uma reflexão incomum ou um caso insólito para contar? Participe da coluna O Pior da Semana enviando sua mensagem para tati.bernardi@grupofolha.com.br

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