Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Viva o autobullying

'Nanette' é a descoberta mais vigorosa e pungente em tempos de #metoo

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A menos que você esteja hibernando embaixo de cobertas que bloqueiam a internet, certamente já assistiu a "Nanette" (ou ouviu amigos comentando: "que porrada"), o stand-up de Hannah Gadsby disponível na Netflix.

Fiquei um tanto enciumada porque eu já era fã da atriz e humorista desde o seriado "Please Like Me", mas agora ela deixou de ser um segredinho maravilhoso e vem causando discussões acaloradas nas redes sociais. Como Hannah mesmo afirma em seu espetáculo: "Existe uma grande demanda por comunicação genuína", e ela talvez seja a descoberta mais escancaradamente sincera, brilhante, vigorosa e pungente desses tempos de #metoo.

A excelente e necessária (e longa) parte de seu show que cabe ao feminismo, deixo para quem discorre bem sobre o assunto. Até porque ela fala mal do Woody Allen e eu não saberia fazer o mesmo. O que me pegou de jeito foi o seu recente confronto com o imenso talento que tem para o humor autodepreciativo.

Na primeira metade do show, Gadsby anuncia que não vai mais se ridicularizar, se colocar de forma tão inferiorizada, para entreter sua plateia. Ela é merecidamente ovacionada quando conclui: "Não farei mais isso nem comigo nem com as pessoas que se identificam comigo". 

Particularmente no caso das minorias, das quais ela faz parte como lésbica, Hannah afirma que a autodepreciação não é humildade, e sim humilhação. A partir desta sentença-bomba, o stand-up começa a não mais procurar aceitação através do riso e ganha tons sombrios. A plateia, talvez procurando na bolsa um Dorflex para a cervicalgia, emudece completamente.

Hannah Gadsby, que nasceu na Tasmânia, onde era proibido por lei ser homossexual até 1997, está cansada de transformar seus piores traumas em piadas como tática de sobrevivência e sustento. Ela quer se concentrar na parte da história que mais importa para a sua saúde mental e, se continuar focando no cômico "que tem começo e meio, mas não tem fim", jamais propagará o que realmente precisa ser narrado nem alcançará a transformação que pretende, na sociedade e na própria vida.

Fiquei dias com "Nanette" na cabeça. Eu passei minha vida acreditando que o autobullying era o que nos salvava diariamente de não pirar e, de quebra, ainda nos permitia dormir de conchinha com o ego usando um pijama tão ridículo que estávamos liberados de ser ostensivamente inflados. O que faríamos então com toda a espetacular dramaturgia judaica dando uma aula de como ser algoz de si mesmo para alcançar a iluminação?

Recentemente o psicanalista Daniel Kupermann, que tem ótimos artigos acerca do humor, me lembrou uma das mais brilhantes piadas de Freud, documentada na biografia escrita por Peter Gay. Quando as autoridades nazistas o obrigaram a assinar um documento declarando não ter sofrido maus-tratos, ele concordou, mas acrescentou: "Posso recomendar fortemente a Gestapo a todos". Gay chegou a pensar que era um desejo suicida de seu biografado, mas é só lembrar de outra frase genial de Freud: "O humor não é resignado, mas rebelde", que percebemos sua intenção.

Tudo isso me faz pensar que o expurgo da tragicomédia, que fortalece as conexões humanas em sua mais rudimentar e honesta necessidade de acolhimento (e não somente a insensibilidade "rimos para nos sentir superiores perante o ridículo", tratada pelo filósofo Henri Bergson), foi o que possibilitou, primeiramente, que Hannah lotasse aquele teatro na Austrália e chegasse até a Netflix para ser, então, ouvida e aclamada mundialmente. Antes ela teve que se distanciar da dor através do humor para resistir e, finalmente, criar as forças necessárias para gritar (e como foi lindo!): "Não há nada mais forte do que uma mulher despedaçada que teve que se reconstruir!".

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