Descrição de chapéu

Hannah Gadsby estreia na Netflix com notável comédia que ataca a comédia

Além de engraçado, 'Nanette' é o mais urgente e incômodo standup destes tempos de #MeToo

Jason Zinoman
Nova York

Era inevitável que o humor standup terminasse por canalizar a indignação justificada do movimento feminista atual.

Dave Chappelle e outros humoristas abordaram o movimento #MeToo, mas nenhum deles produziu um espetáculo tão urgente e tão incômodo quanto “Nanette”, que estreou em Nova York em março, e revelou uma nova e importante voz no humor, Hannah Gadsby. Agora, o show está na programação da Netflix.

Ela esculhamba Louis C.K., Harvey Weinstein e Bill Clinton, bem como Pablo Picasso, em uma engenhosa crítica ao sexismo e sentimentalismo de nossas narrativas sobre o gênio, mas seu verdadeiro alvo é a cultura que autoriza e desculpa abusos. Isso não parece engraçado, eu sei, mas ela é engraçada, também.

No entanto, as risadas de seu espetáculo servem a um fim: um ataque feroz contra o mundo da comédia.

Gadsby, 40, é uma australiana desconhecida nos EUA, mas a maneira pela qual transforma argumentos intelectuais em piadas secas deixa claro que não é principiante.

Depois de mais de uma década no standup, ela desenvolveu um público na Europa e Austrália, com histórias autodepreciativas sobre sua família, seu peso e sobre se assumir como lésbica em uma comunidade homofóbica.

“Nanette”, que conquistou prêmios no ano passado no Edinburgh Festival Fringe e no Festival Internacional de Comédia de Melbourne, começa seguindo essa linha idiossincrática.

Ela sobe ao palco gaguejando, desajeitada, demonstrando neuroses altamente articuladas, ajustando o pedestal do microfone e empurrando os óculos nariz acima repetidamente —o que lembra um pouco Woody Allen.

Ela zomba da Tasmânia, onde cresceu e onde o sexo gay era crime até 1997. Seu jeito autoirônico, canhestro, é uma afetação comum entre os humoristas, mas chega o ponto em que ela o abandona e desconstrói, e esse momento faz com que o espectador reavalie tudo que viu até ali.

“Você sabe o que autodepreciação quer dizer, para alguém que vive à margem?”, ela pergunta. “Não é humildade. É humilhação.”

O ceticismo com relação à comédia, que data pelo menos de Platão, é mais antigo que a visão romantizada que prevalece hoje sobre o humor, e inspira tanto os humoristas que o praticam quanto os críticos que afirmam que as melhores piadas atacam os poderosos e têm raízes na verdade.

Gadsby tem seu momento mais radical ao rebater essa ideia, explicando que humor engraçado nem sempre tem a ver com honestidade, e na verdade recompensa a trapaça.

Ela conta também que, em sua cidade homofóbica, transformou sua vergonha em comédia, mas pagou o preço: jamais superou por completo a autoaversão. Ao explicar de que maneira transformou a história de como saiu do armário em momento cômico, ela inverte o clichê do humorista que encontra a salvação ao transformar a dor em riso.

O espetáculo de Gadsby faz a plateia rir muito, mas repetidamente resulta em momentos de silêncio mortal. Ela salta agilmente de relatos pessoais para o quadro mais amplo, o que inclui uma digressão feroz sobre Picasso, que ela descreve como misógino.

Depois de atrair atenção para o quanto é tolo discutir história da arte em um show de comédia, ela volta a falar sério, dizendo que os humoristas preferem fazer piadas que ridicularizam Monica Lewinsky, ou falar de Harvey Weinstein “com humor passageiro”.

É ao falar sobre isso que Gadsby deixa as brincadeiras de lado e adota um tom grave, e ela diz que nos incomodamos mais com as reputações de humoristas como Louis C.K. e Bill Cosby do que com as reputações de suas acusadoras.

Isso significa que “Nanette” deixa de ser comédia? Em minha opinião, não.

A comédia pode criticar os preconceitos que embasam o humor, ou contestá-los. “As pessoas só se sentem seguras quando o humor raivoso é feito por homens”, disse Gadsby. “Quando eu o faço, sou só uma lésbica furiosa estragando a diversão.”

Ela tem razão ao dizer que o standup raivoso vem sendo território masculino, e que existe duplicidade, mas a comédia não parou no tempo.

Vivemos um momento em que, ao que me parece, o público já não quer ouvir humoristas homens raivosos, mas o trabalho de Lenny Bruce e Bill Hicks preparou o terreno para que vejamos a feroz Gadsby bem estabelecida da tradição do standup.

A melhor defesa contra o ataque de Gadsby à comédia é seu espetáculo —uma ironia da qual ela está claramente ciente.

A arte é flexível para abarcar contradições. E é por isso que o paradoxo presente no cerne deste notável espetáculo —uma comédia que ataca a comédia— na verdade serve para elevá-lo. E isso é muito engraçado.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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