Foi dando o horário de ir para a festa e meu corpo inteiro começou a apresentar sintomas. Enxaqueca, enjoo, dor nas costas, a escápula esquerda inflamada e latejante.
"Sou amiga dessa pessoa há mais de vinte anos, eu preciso ir." Essa era a frase que eu repetia enquanto tomava banho, escolhia a roupa, saía da garagem com o carro.
"Como vai ser quando ela abrir a porta e eu a encarar de verdade?" Porque uma coisa é ser simpática por email, mensagem, dar likes em redes sociais. Uma coisa é fingir com dois dedos indicadores catando milho. Outra é observar, presencial e inconsolavelmente, os escombros de uma grande amizade. Eu não vou conseguir disfarçar o fim do amor, e sem dúvida será bastante indelicado presentear uma aniversariante de 40 anos, outrora tão querida, com o meu desprezo.
Durante o caminho tentei salvar nossa relação. "Sua amiga cometeu um erro, mas lembra quando ela foi a única a ver seu nome na segunda lista dos aprovados do vestibular? Lembra quando você tinha medo de dirigir na marginal Pinheiros e ela ia ao seu lado cantando bem baixinho para te acalmar? Quando você tomou um pé na bunda e ela dormiu na sua casa? Quando você estava com crise de ansiedade e ela ficou com você no telefone até o avião decolar?" Enfim. Eu tinha que ir. Eu fui. Eu não devia ter ido.
Deixar de amar um amigo por diferença política poderia ser, há tempos, uma besteira, um preciosismo, uma ferida narcísica. Mas as coisas mudaram. Hoje em dia, a diferença deixou de ser partidária e se tornou humanitária. A discordância deixou de ser fundamental para uma discussão complexa e passou a significar, da forma mais simplificada e maniqueísta possível, ignorância ou mau-caratismo. Se o seu amigo está ao lado das armas e contra os professores, como estar ao lado do seu amigo?
O primeiro soco no estômago, senti ao estacionar na sua rua. Lembrei da gente rindo porque eu tinha misturado um relaxante muscular com um antialérgico e fiquei completamente fora da casinha. Lembrei da gente apaixonada por um escritor que nem sequer tinha conhecimento da nossa existência, combinando como seria quando ele te largasse para ficar comigo. A gente sofrendo pelos muitos namorados péssimos, noites sem fim (como isso era divertido). Ser perdida e angustiada ao seu lado tinha uma aura de "taí uma coisa legal pra fazer num sábado à noite".
E agora, só porque você votou num candidato diferente do meu, eu ia"¦ o quê? Esquecer de tudo o que vivemos? Romper com a minha melhor amiga? Sair pelo mundo com o semblante cansado, desguarnecido e aterrorizado de quem não tem mais a segurança de um colo dos tempos da adolescência?
Eu queria me colocar no seu lugar, praticar a empatia mais high-tech do mundo e acordar na sua pele, com o seu cérebro, com o pulsar das suas decisões no peito. E entender e perdoar e voltar a gostar de você do jeito que eu sempre gostei. Do jeito que tem cheiro de lápis de cor, pão de queijo e spray autobronzeador.
Fiquei parada dentro do carro tentando decidir o que me dava mais medo: ir embora e desistir de você, subir e correr o risco de arrumar uma briga enorme e feia com todos aqueles amigos detestáveis que foram te cercando nos últimos anos, ficar imóvel ali correndo o risco de ser assaltada.
Batem no vidro. Levo o maior susto e descubro que é você. Percebo que você ainda me espanta menos do que uma pessoa armada. Pena que não deve ser por muito tempo.
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