Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Desculpa qualquer coisa

Eu respondo com aquele sotaque de paulistana riquinha tosca

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Entro na estreita loja de brigadeiros que fica entre um pet shop e uma farmácia de manipulação. Eu não quero brigadeiros --e muito menos o sorvete de churros anunciado em um banner com direção de arte bastante duvidosa. Simpatizo com animais de estimação e fitoterápicos, mas, nesse momento, a proximidade deles me causa o mesmo que saber da existência de vagens à venda numa feira: coisa nenhuma. O choque térmico do ar-condicionado no talo tampouco me agrada, e eu preferiria que a minha filha evitasse colocar na boca a girafa do "cantinho lúdico" que acabou de ser lambida por uma criança catarrenta. Eu não quero absolutamente nada que a pequena loja de brigadeiros da Pompeia, nem suas adjacências, possa me oferecer.

O calor está mais insuportável do que me ouvir falando com vizinhos desinteressantes sobre quão insuportável está o calor. Qualquer que seja a angústia de viver neste planeta, hoje ela será mais impiedosa: a sensação térmica é a de estar em carne viva e sem as córneas no deserto do inferno.

O rapaz da loja de brigadeiros sorri exagerado e claramente em desassossego com a probabilidade zero de obter qualquer prazer naquele lugar. As escassas pessoas nas parcas cadeiras da minúscula loja de brigadeiros da Pompeia são tão "por acaso" que não servem nem para configurar um tipo mais descritivo de clientela a ser estudada e conquistada. O rapaz agora sorri menos (nem tudo está perdido) e me pergunta qual das delícias eu gostaria de adquirir. Eu digo que busco apenas uma água gelada, mas sem gelo, e já sou tomada pelo mal-estar de saber que o copo virá com pedras --sempre sabemos quando não prestam atenção em nossos desejos.

Eu ignoro o copo, guardo a garrafa na bolsa, pago e vou me dirigindo para a saída sem entender por que entrei ali, quando o rapaz grita do caixa: "Desculpa qualquer coisa!". Eu respondo "magiiinahh", com aquele sotaque de paulistana riquinha tosca que se acha uma queridona espiritualizada apenas porque não destrata os desconhecidos que a servem. Também não sei por que faço a voz, mas acredito que a abomino tanto que exagerei nas imitações (como forma de crítica social) e acabei me viciando.

Agora estou quase chegando em casa e começo a ter muita vontade de voltar. Parece tudo tão errado nesse dia que, quando alguém pede desculpas por "qualquer coisa", dá vontade de responder "ok, dessa vez passa" --e não é justo com você, rapaz da loja. Não tome para si a falência da quase invisível loja de brigadeiros que também vende churros e pão de queijo e tem cantinho lúdico. Não sofra pelos perdigotos com vírus nas girafas de brinquedo. Não é mérito seu a depressão que dá ver filhotes de cachorro em vitrines sujas nem a existência de doenças, sobretudo psíquicas, que jamais serão amenizadas por gotinhas de zero vírgula porra nenhuma boiando em vidrinhos com cachaça holística. Por favor, não se sinta responsável por políticos criminosos que imitam um castor trincado e limpam o choro seco na bandeira do país.

Sim, estamos na Pompeia, e não em Roma, mas, por favor, não foi você que me segurou no portão de embarque. Eu que nunca nem chego a ir para o aeroporto. A vida pode ser um saco para quem não vende e mais ainda para quem não compra brigadeiros, mas, se você continuar se desculpando, as pessoas que falam "magiiinah" vão continuar aceitando.

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