Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Volta pra mim?

Sem você passei por turbulência de avião, enxaqueca de 20 dias, teta caída, traição

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Esta é uma carta de amor em tempos sombrios. Um pedido público, apaixonado e rasgado para que você volte para casa. Não vou negar que planejei, cheia de esperanças, o nosso rompimento (como se ainda restasse em mim o amálgama da coragem com a curiosidade, típico da juventude). Antes de a minha preguiça ultrapassar qualquer expectativa, eu costumava ter fé que arrumaria algo melhor e mais benéfico do que você.

Espero que entenda que a decisão de engravidar me pareceu muito mais urgente do que continuar com as nossas deleitosas noitadas. Um filho, e com ele todo amor e pavor possíveis, jamais combinou com uma relação imatura, narcótica e viciante.

Agora, minha filha já está com mais de um ano e eu cansei de disfarçar a imensa saudade que sinto do seu colo, do seu silêncio, da sua mão firme e soberana na minha testa ensopada, acalmando meu enjoo. Sim, estou disposta a não ser exclusivamente este corpo denso e materno, e retomar nossas tardes de nudez tranquila e entrelaçada. Volta? Nenhum homem, pai ou deus fez por mim o que você faz.

Casa que integra roteiro histórico em Ilhabela (SP)
Casa que integra roteiro histórico em Ilhabela (SP) - Eduardo Anizelli/Folhapress

Não suporto mais. Meu pescoço sem a sua língua quente soltando meus nódulos de tensão. Meu cérebro sem seu bafo amoroso, o único a interromper o bate-estaca da minha repetição. Minha virilha rígida, travada, temerosa, sem as suas unhas perseverantes, cavoucando espaços inesperados para a nossa suruba espiritual.

A burrice e o fascismo, feito baratas esfomeadas num pós-apocalipse, saem ininterruptamente de bueiros autorreplicantes. Apesar do mais bonito Carnaval já visto (até eu que não gosto de aglomerações me comovi), as pessoas seguem cada dia mais armadas de ignorância e fardadas de arrogância.

Sem você passei por turbulência de avião, enxaqueca de 20 dias, mononucleose infecciosa, morte de melhor amiga, teta caída, presbiopia, tédio sufocante, mil amigdalites, crises de pânico, dor crônica, privação de sono, traição, síndrome do intestino irritável, vontade de inexistir. Sem você tive que pedir à minha mãe que saísse, mesmo precisando tanto de uma mãe. Sem você tive que pedir a um homem que não saísse, mesmo precisando tanto não ter que pedir isso.

Você consegue imaginar o que foi sentir, durante o parto, a anestesia subir em vez de descer? Onde estava você quando não pude sentir meu coração no momento de maior emoção? O mundo é real demais quando estamos separados. As senhoras passivo-agressivas são ainda mais insuportáveis. A falta de empatia corrói ainda mais os ossos responsáveis por nos deixar em pé. Os maridos que se incomodam com os seios das mulheres amamentando em público são ainda mais brochantes.

Mês passado visitei um casarão com um imenso gramado. Ao fundo dele, escondido, o barraquinho dos empregados, descascado, sem piso, fedendo a mofo e descaso. Na frente, acobertados por vidros limpos, paredes iluminadas e risadas ocas e desbragadas, obras de arte me encaravam tristes, livros pulverosos adormeciam depressivos, ladainhas ególatras e infindas não alcançavam nenhum ouvido interessado. Quando não se importam com a dor que sai de nossa boca, como podemos oferecer nossas orelhas na tão delicada dança do convívio?

Está difícil demais suportar o mundo sem você. Por isso, te peço, não vamos mais esperar nem um dia. A cara limpa me deu as necessárias rugas e corpulência. Mas agora, exaurida e precisando do seu afeto incondicional, certeiro e imediato, lhe imploro por férias merecidas. Só você e eu. Volta pra mim, Rivotril.

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