“Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada […]”.
Eu nunca tinha lido nada da Hilda Hilst, apesar de ter alguns dos seus livros aqui e de sempre flertar com eles. Pois, durante a leitura de “A Obscena Senhora D”, me vi andando em círculos pelo escritório, recitando em voz alta suas poucas, e literariamente enormes, páginas. Lançando em 1982 e reeditado recentemente pela Companhia das Letras, com posfácio brilhante da crítica e professora Eliane Robert Moraes, a obra é um jorro vigoroso em busca de nexo (e talvez eternidade) para tudo aquilo que nos arrebata e nos faz pulsar.
Inconformada com a morte do seu parceiro de décadas e cheia de perguntas impossíveis e urgentes, a narradora Hillé relembra a primeira vez com Ehud, quando em seu rosto ela viu “um lago de ouro”, e a intensa atividade sexual do casal nos primeiros anos.
Ehud, que achava que nunca morreria, pois só os velhos morrem, no fim acaba lhe pedindo: “quando eu não estiver mais, evita o silêncio, a sombra, procura o gesto, a carícia, um outro […] busca tua salvação” e ainda a aconselha a nomear as ilusões para afastar-se da vertigem.
E, de fato, Hilda, Hillé e a Senhora D tentaram por demais nomear tudo quanto possível, e caçar, para além desta vida e dos limites da própria loucura, o ouro da verdade. A corrida para verter em palavra aquilo que não se diz, seja sobre Deus ou sobre o orifício anal (ou eles sendo o mesmo) era a sua vertigem e, arrisco dizer, a sua salvação “[…] às vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?”.
A vizinha quer lhe levar um pão, recitar aquele papinho clichê sobre superar a morte e seguir em frente – tão ofensivo para almas mais sensíveis e profundas. Pois é nua, mostrando a vagina, fazendo caretas de maluca, que ela recebe a insuportável e dita normalidade. Ficando famosa nos arredores como porca. Brada palavrões, imita animais e afugenta as crianças e as famílias: “O corpo é quem grita esses vazios tristes”.
Se você é como eu e a lama obscurantista em que estamos imersos só aumentou seu desejo por um texto que dê ritmo, poesia e honestidade libertária à nossa angústia e nojo, aqui está um parágrafo atualíssimo: “Antes havia ilusões, não havia? Morávamos nas ilusões. Ehud, e se eu costurasse máscaras de seda, ajustadas, elegantes, por exemplo, se eu estivesse serena sairia com a máscara da serenidade[…] máscaras de ódio, de não disponibilidade, máscaras de luto, máscaras de não pacto […]”. E ainda: “ninguém está bem, estamos todos morrendo”.
A obscena senhora D
Hilda Hilst
Companhia das Letras, 80 páginas
R$ 35,05
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