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Machado de Assis era negro ou branco, do Fla ou do Flu?

Como se explica que a sua obra pareça fazer vista grossa da libertação dos escravos?

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Ferreira Fernandes

​Nesta semana, o correspondente do Le Monde no Brasil publicou o artigo “A Redescoberta no Brasil das Grandes Figuras Negras que Foram Branqueadas". O texto refere até um presidente, Nilo Peçanha, de mandato efêmero (1909-1910) mas com décadas de campanhas dos adversários a lhe chamar “mulato”.

Há quatro ou cinco presidentes brasileiros com notórios ou leves traços fisionômicos africanos e só o mais recente, Fernando Henrique Cardoso (1995-2003, antecessor de Lula), assume uma trisavó “escrava”. “Sou mulatinho”, ele se apresentou, quando era ainda candidato.

E, já eleito, discursando ao lado do presidente sul-africano Thabo Mbeki, Fernando Henrique insistiu na origem. “Basta olhar para mim para se ver que branco no Brasil é um conceito relativo."

Mas o texto do jornal francês é quase todo dedicado a Machado de Assis, sujeito sempre interessante e mais agora, com esta atualidade tão prenhe do #racismo. “Hoje muitos nem sabem que o maior escritor do país era negro”, escreve o Le Monde. Filho de uma lavadeira açoriana branca e de um mestiço pintor de paredes, este, de mãe escrava, Machado de Assis nasceu em 1839, no Rio de Janeiro.

Fez uma razoável carreira como funcionário público e, tal como seu pai, se casou com uma portuguesa, Carolina Augusta Xavier de Morais. Ela era de uma família portuense abastada e culta. No Porto privara com Camilo, antes de ir para o Rio, onde foi ajudar um irmão doente e conheceu o futuro fundador da Academia Brasileira de Letras. Ela foi importante na formação literária do seu marido.

É comum e antigo no Brasil se desdenhar da colonização portuguesa, suspirando por ela dever ter sido holandesa. Mas os portugueses algum mérito deviam ter tido, pois proporcionaram os acasos de ter havido um mestiço, em pleno século 19, com mãe e mulher brancas… Seria apostar demasiado – "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba", "Dom Casmurro"– querer substituir essas obras-primas pela mera promessa de contas públicas sempre acertadas.

Aquelas relações familiares, mestiço com mãe e mulher brancas, e naquela época, século 19, seriam muitíssimo improváveis em país nascido de ex-colônia holandesa. Logo, não haveria Machado de Assis, nem a beleza dos seus romances (e os contos e as crônicas).

Dizem que como romancista, na língua portuguesa, só Eça de Queiroz se lhe compara (Eça que sabia de cor um capítulo inteiro de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"). O crítico literário americano Harold Bloom diz que Machado de Assis é o maior escritor negro de sempre. São listas.

Eu digo que ele é o autor, para citar curto, de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba", "Dom Casmurro". Questão pessoal, tanto prazer. Consequência pessoal, ficar pasmado, no Cosme Velho, no Rio, frente a um vulgar condomínio moderno, e me emocionar pela memória de um chalé, que já não existe.

Foto antiga mostra a vivenda estreita com beirais rendados das casas de brasileiro de torna-viagem, no norte português, três portais dando cada um para uma varanda de ferro forjado --no andar de cima morou o Bruxo do Cosme Velho e a sua mulher. E eu parado a ver o que já não havia.

Na foto mais clássica de Machado de Assis, a luz chapada na cara branqueia a tez, o nariz é demasiado fino e o cabelo é liso como o de Duke Ellington e outros jazzistas mais negros que o brasileiro. Em 1908, na certidão de óbito, um escrivão de Cosme Velho acrescentou ao nome do falecido o que nem era obrigatório –“cor branca”.

Os bustos e estátuas dele, feitos no seu tempo, são em mármore branco, nunca em basalto preto. No ano passado, a Universidade Zumbi dos Palmares fez uma campanha mostrando outras fotos do escritor, a pele mais escura, o cabelo mais crespo e o nariz de abas mais largas. O site brasileiro Resistência Afroliterária não tem dúvidas –“Machado de Assis é um escritor negro".

É conforme, como naquela dúvida sobre estar o copo meio cheio ou o copo meio vazio. Pois são perspectivas a mais, o copo, embora repetido, vale menos que o conteúdo. Branco, apesar do escuro da pele; negro, apesar da sucessão genética do avô branco e a mãe branca, e a osmose sociológica trazida pela mulher de classe superior. Machado de Assis, branco ou negro? Segundo os tempos e as modas a resposta é dicotômico, um ou outro. Hoje estaríamos na fase Machado de Assis escritor negro –até um jornal da França de Victor Hugo assim acaba de o definir.

É um presente envenenado. Se assim for, se Machado de Assis é escritor negro, como se explica que a sua obra pareça fazer vista grossa da grande questão do seu tempo, a libertação dos escravos? Porque é que as mulheres machadianas não são as dos morros mas as elegantes da rua do Ouvidor?

Estas acusações já lhe foram postas há cem anos, quando se comparava a sua não militância abolicionista com a do jornalista mulato José Patrocínio, um dos líderes da causa. Ou, pior, quando se pretextava que o escritor mulato Lima Barreto tinha menos projeção literária porque era panfletário e assustava o mundo dos brancos, ao contrário do costume de Assis em não contrariar ninguém. Um crítico, em 1939, decretou sobre ele: “Foi um grande escritor. Não foi um grande homem. O povo nunca o compreenderá”.

Se foi assim há décadas, adivinhem como a modernidade do MeToo vai escrutinar os pecadilhos de Machado de Assis. A primeira fase está cumprida, já se sublinharam os seus traços africanos e os tornaram exclusivos. Dirá a fase seguinte: então como se admite que ele próprio não tenha insistido em mostrar as fotos em que os seus cabelos crespos e o nariz de preto são notórios? E tendo a família aristocrática da mulher feito saber que era contra o casamento de Carolina com um mulato, porque não espingardou ele com um escândalo literário? E assim por diante.

Da ronha da sociedade branca que apagou as características do gênio que lembravam uma origem imprópria, passamos agora para a militância e indignação carimbando anátemas. Copo meio vazio, copo meio cheio –uma visão vesga. Incapaz de perceber um artista maior que o foi justamente porque não era ou-ou, preto ou branco, era, isso sim, um extraordinário copulativo “e”. Machado de Assis era isto e aquilo, yin-yang, a dualidade das forças opostas e complementares da sociedade brasileira. E do mundo em geral. Mestiço, ou em rumo de o ser.

Ele era o mestiço vindo das classes inferiores, dos criados domésticos e sem estudos, subiu pequenino, foi tipógrafo, e por meio de um talento entrou na alta sociedade, casou na burguesia e era apreciado pelo imperador dom Pedro 2º. Esse talento serviu para conhecer os dois lados; conhecer os dois lados serviu para aprimorar o seu talento. Ele conhecia como nenhum outro intelectual brasileiro os dois lados do mundo e os olhou sempre de fora e por dentro.

“Eu não me quero senão com dissimulados”, avisa o narrador em "Quincas Borba". Escrever é encantar o outro, levar o leitor à água do seu moinho. Foi sempre tão bom ser manipulado por Machado de Assis. Negro e branco, nem um nem outro, à frente de ambos. Ele foi fundamente mestiço, adiantou o futuro.

Agora, traduzido por miúdos. Machado de Assis não se opôs às manias da família da mulher? Por amor da santa, casou com a Carolina! Não lutou contra o racismo? Pois não, fez mais. Era pobre, mestiço, gago e epilético –e engoliu os racistas. E sendo um gênio se tornou o escritor universal brasileiro. Sendo Garrincha, por que o reduzir a ser do Fla ou do Flu?

Jornalista e cronista português, foi até maio diretor do Diário de Notícias, em Lisboa. Autor dos livros de jornalismo 'Os Primos da América' e 'Madeirenses Errante'

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