Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Serendipidade na matemática

'O acaso só favorece a mente preparada', disse Pasteur

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Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios. Cedo o espaço a Cecília Salgado, matemática e professora da UFRJ.

Na série "Dr. House", o protagonista é um médico que lida com casos complexos e sempre chega ao diagnóstico num rompante, ao observar algo que em princípio não tinha nada a ver com a doença. Um ótimo exemplo de serendipidade, do papel do acaso nas descobertas.

A importância da serendipidade no progresso das ciências não é novidade. O observador, porém, precisa estar preparado para identificá-la. A penicilina, por exemplo, mudou o mundo. Desde que foram inventadas, em 1877, inúmeras placas de Petri devem ter ficado expostas, infestadas de fungos, e apenas Fleming, em 1928, se interessou pelo fenômeno e decidiu entender por que o estafilococo não se multiplicava. Não fosse sua curiosidade, a penicilina não teria sido criada.

Se na biologia ou na química o aleatório se manifesta por meio da observação de fenômenos muitas vezes cotidianos, na matemática, em particular na matemática pura, ele em geral dá as caras fora dos laboratórios, uma vez que papel e caneta são o bastante para grande parte dos estudiosos.

Os bastidores do Último Teorema de Fermat são um caso de serendipidade na matemática. Pierre de Fermat, jurista francês do século 17, foi também matemático amador. Costumava fazer anotações nas margens do livro "Aritmética", de Diofantus, no qual eram descritos muitos enunciados, quase nenhum acompanhado de prova. Fermat morreu em 1665 e, ao que parece, não compartilhou com ninguém sua mais famosa conjectura, em sua generalidade.

Alguns anos depois, o imprevisto se manifesta pela primeira vez. O filho de Fermat publica uma edição de "Aritmética" com as notas do pai e a conjectura fica conhecida. Cem anos mais tarde, todas as conjecturas levantadas por Fermat haviam sido demonstradas, com exceção de uma, batizada de Último Teorema de Fermat. Seu enunciado diz que não se pode separar um cubo em dois cubos sem que um deles seja zero. Mais geralmente, não se pode separar uma potência n-ésima em duas potência n-ésimas sem que uma seja zero, para todo n maior que 2. Em suas anotações, Fermat havia afirmado que conhecia uma prova para o teorema, mas que não havia espaço suficiente para registrá-la.

A busca por uma prova para enunciado tão simples é bem conhecida dos teóricos dos números como eu, mas nem tanto entre os demais colegas. A demonstração do também francês Lamé, um século depois, seria perfeita, não fosse um detalhe: ele supunha que todo número se fatora de maneira única como produto de primos. Tal fato é verdade para o subconjunto dos números inteiros, por exemplo 6=2.3. Só que quando admitimos certos números complexos, como a raiz quadrada de 10, a fatoração pode deixar de ser única: 2.3=6=(4+ˆš10).(4ˆ’ˆš10).

A história podia parar aí, seria mais uma prova errada. Contudo, graças aos olhares atentos de dois alemães, Kummer e Dedekind, desse erro nasceu uma nova subárea da teoria dos números. Foram criados os ideais, fundamentais no desenvolvimento da geometria algébrica, outra área que hoje coleciona medalhistas Fields, o Nobel da matemática. Além disso, descobriu-se que um conjunto de números pode falhar a fatoração única de maneiras diferentes e daí nasceu a teoria dos corpos de classe, subárea da teoria dos números.

O Último Teorema de Fermat foi demonstrado finalmente em 1994, e até hoje ideais e corpos de classe continuam sendo estudados. Muitos teoremas ainda serão formulados e outros tantos demonstrados envolvendo esses objetos abstratos que nasceram graças a um erro.

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