Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Comorbidade Nutella

Notei que boa parte dos meus conhecidos desencavou uma bronquite do passado

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Aqui só tem gente séria e progressista. Digo, as pessoas de meu convívio. Mas notei que boa parte dos meus conhecidos desencavou uma bronquite alérgica que tinha sido resolvida no passado. “Eu sofria muito aos sete anos”, disse Celso (nome fictício de César, meu amigo de faculdade, hoje com 43 anos).

A.C. (abreviatura para não expor Ana Cecília, uma amiga de infância) tem prolapso da válvula mitral (para quem não sabe, apenas uma alteração morfológica). Uma vez Aninha, que frequentava o mesmo curso de teatro que eu, se sentiu zonza no ensaio e avisou a todos: “Meu coração não é bom, vou durar pouco”. Sua mãe, psicanalista, recebeu o telefonema da escola e, em vez de buscar a filha correndo, pediu que todo mundo a ignorasse. Aquilo sim foi uma grande aula!

Pois ontem, no Instagram, vi que A.C. tomou a Pfizer e fez foto chorando “Viva o SUS!” —trajava uma roupa bem decotada para não perder a chance de exibir tatuagens e bijuterias ecoconscientes. Será que, na cara dura, meteu um atestado de condição cardíaca grave ou só com o tal “pseudossopro-todo-mundo-tem” conseguiu vacinar? Pergunto isso porque eu tenho prolapso da válvula mitral. E você também deve ter. E sua tia com mais idade idem, o que me faz pensar que é melhor deixar a vaga na fila para ela.

Dibyangshu Sarkar/France Presse

Diogo (nome fictício para Diego, um cara que trabalhou comigo numa agência de publicidade) leu uma crônica antiga minha sobre síndrome do intestino irritável e me escreveu esses dias: “Eu sei o que é sofrer desse mal e conto com você, pessoa pública [sic], para reclamar que nenhum médico quer dar atestado para a nossa comorbidade [sic]”.

Caro D., eu jamais me prestaria a furar uma fila porque, algumas semanas por ano, sofro de impetuosidade em parte de meu órgão excretor. Mas, nada a ver com a conversa, a palavra “síndrome” me lembrou que sou vasovagal —e que nem para transformar nossa ziquizira em doença crônica severa o Pazuello prestou.

Na real, o que corre à boca pequena é que “estão facilitando” para a galera com hipotiroidismo. Eu já fui diagnosticada com tal doença. Mas repeti o exame e deu que eu não tinha. Então repeti novamente e deu o que um médico chamou de “por enquanto talvez não”. Fica aí a pergunta: com tireoide apenas “em vias de dar ruim, mas é bom fazer o exame todo ano” já posso usar adesivo de solzinho com a palavra “comorbidade” escrita em Comic Sans?

Em um grupo do Facebook sobre fibromialgia o pessoal anda dividido. Metade acha que é condição para vacinar, outra metade está com dor demais para achar qualquer coisa, que dirá entrar no Facebook. Uma noite, insone, comecei a ler que “coceira pode te dar um passaporte para a vida”. Desde que seja séria (autoimune) e você faça uso de imunossupressor. E acabei caindo num fórum em que seres esperançosos perguntavam a médicos se com dermatite herpetiforme, crise de pânico, HPV, dor de cabeça, pedra nos rins e catarata poderiam ser consideradas grupo de risco.

A comorbidade Nutella virou o novo cercadinho VIP. Vivemos tempos em que, em vez de chacoalhar champanhe com pulseirinha neon, sacamos nosso iPhone e nos emocionamos com uma picada de agulha. Todos muito culpados, porque somos legais, mas também muito desejantes de sobreviver, pois temos um presidente genocida. Eu não ia julgar, mas saiu esse texto.

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