Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu alimentação

Saudade de um cardápio, né, minha filha?

Quê-erre-code é uma palavrinha que vem me ajudando na dieta

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Quê-erre-code é uma palavrinha que vem me ajudando na dieta. Nem sempre meu celular está carregado, nem sempre a foto tirada do adesivo todo molhado e surrado com o código de barras, no cantinho da mesa do restaurante, faz abrir um site. No mais, eu só queria bater logo o olho numa gororoba digna, impressa em letras garrafais num cardápio gigante (cada dia que passa eu enxergo menos), e seguir conversando com alguma amiga que nunca tenho tempo para encontrar. Toda essa aventura virtual por um guacamole quase me tira o prazer de degustá-lo.

Antes que alguém me acuse de ser uma mimada quarentona da zona oeste, sofredora patética pois adepta sem-vergonha de itens vexatórios para o progressismo e viciada em costumes arcaicos (tal qual o uso indiscriminado de papel), cá estou para o fake autoflagelo. Sim, eu sou tudo isso e sinto falta do que aprendi a chamar de restaurante. Aquele lugar a que você chegava, sentava, encontrava amigos, engordurava a ponta dos dedos com muito pãozinho na manteiga e depois metia o indicador no plastiquinho ensebado de um belo cardápio, apontando: "Este aqui ó: só me ajude a falar ‘cocávan’, porque eu não sei!".

QR Code para cardápio do restaurante Tuy Cocina
QR Code para cardápio do restaurante Tuy Cocina - Divulgação

Por Deus, qual o problema com os cardápios? Então pode sentar em mesinhas coladíssimas, em ambientes fechadíssimos, com todo mundo sem máscara tossindo lá dentro, mas não pode um papel que o coleguinha segurou antes de você? O Dráuzio já avisou que não precisamos ficar a tarde inteira esfregando um pepino com álcool para que possamos nos comprazer (alimenticiamente, quero dizer) com o vegetal.

Talvez num futuro próximo alguma pessoa muito estranha, muito doente, porém uma boa pessoa, faça um museu do cardápio. Aquele couro marrom com filetes douradinhos nas pontas me transportará para jantares dos meus vinte e poucos anos, quando eu enjoava agressivamente de garotos da minha idade e dava chances para homens quinze ou vinte anos mais velhos. Homens que, naquele tempo, eram mais jovens do que sou hoje.

No museu do cardápio veremos, em uma sala com lambretas penduradas nas paredes e milk-shakes gigantescos com canudos grossos por onde descerá um caldo neon, os escandalosos e inesquecíveis cardápios de lanchonete. Com destaques para vitaminas criminosas quando tomadas com cruéis lanches que entulham artérias.

Em uma salinha menor em tamanho, mas entojadíssima em soberba, um cantinho "obra de arte", cardápios autorais, de uma folha só, apenas duas opções de pratos impressas em um dos lados, os itens tomando uma distância presunçosa entre si —tanta frescura para vender orelha de porco crua e saco vitelínico de réptil. Jamais entenderei as predileções gastronômicas de alguns ricos. Fiapos transparentes penduram as folhas tão baratas e simples, menos é mais (sei), e elas dançam.

E o cardápio daquelas padarias que também funcionam como restaurantes que homenageiam a culinária de diferentes países e ainda são bares? Nós, neuróticos, castradíssimos, chegávamos a ficar invejosos ao ler o menu: "Sonho e sushi"? "Vitamina de banana e feijoada"? "Caldo verde e uísque"? Por que eles podem tudo e a gente tem que lidar com nossas limitações? Por que o filhinho não pode namorar a mamãe?

Fazíamos cara de refluxo azedo, pensando nas misturas improváveis, vendo o salmão cru coladinho com a pizza acebolada no self-service. Eu queria enquadrar o cardápio desses lugares que tentam ser tudo e não são nada. Defensores inocentes de fantasias megalomaníacas.

Eu tenho saudade até de cardápio fedendo a peixe, todo manchado de tomate e chocolate (esperamos que seja isso), dos metidos a parecer pergaminho, das frases "buffet de saladas à parte" ou "sujeito à sazonalidade da fruta". Hoje eu choraria se visse, ao lado da entrada de burrata, uma anotação apressada, o azul falhado da caneta: "Acabou!".

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