Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Descrição de chapéu É Coisa Fina

Nem todas as crianças sobrevivem

'Pai contra Mãe', obra incontornável de Machado de Assis sobre o racismo, ganha edição primorosa da Cobogó

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Antes da resenha, uma pergunta: quanto tempo demorou para que você soubesse que Machado de Assis era preto? Na escola, muito antes de estar madura para tais obras, os professores me obrigaram a ler "O Alienista" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Contudo, só em vida adulta, com uns 30 anos de atraso, me dei conta de que o maior escritor do país —e certamente entre os cinco maiores do mundo— era obviamente um homem preto.

Antes que você seja obliterado por "Pai contra Mãe", texto publicado originalmente em 1906 (dois anos antes da morte de Machado) em uma coletânea de contos e peças teatrais chamada "Relíquias da Casa Velha", vamos relembrar desse acinte na história da literatura brasileira: o retrato do Machado, como homem branco, estudado em uma aula sobre realismo!

Pinturas de Márcia Falcão ilustram edição do conto 'Pai Contra Mãe', de Machado de Assis, que sai pela Cobogó - Divulgação

A obra conta a história de Cândido Neves, homem que "tinha um defeito muito grave" porque não "aguentava emprego nem ofício" e "adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos".

Até que um dia uma moça de nome Clara, que vivia no portão de casa como "um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe, algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixa-la e ir a outras" se apaixona por Candinho. E eles "se amavam e riam a propósito de tudo", e, ainda que as piadas não "dessem de comer", ao menos "o riso digeria-se sem esforço".

Mônica, a tia até então responsável pela jovem órfã, aconselha os recém-casados a não engravidarem antes de o rapaz arrumar um emprego mais certo: "Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado...". Mas Cândido, até então confiante, acreditava que um único dia de trabalho compensava todos os outros: "Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca, quase nenhum resiste".

Grávida, Clara e a tia trabalham sem parar, costurando tanto para fora quanto para o enxoval da criança, enquanto Candinho "cedia à pobreza" e tentava "caçar", em vão, preto alforriado ou à serviço.

Quando nasce o bebêzinho, a tia dá o conselho de que eles, que tanto "espreitaram a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular..." levassem o filho para a "roda dos enjeitados". Pelo menos o rebento não morreria de fome. E é aí que começa o desespero de Candinho.

O homem, que já estava desistindo de se manter de pé, mas jamais desistiria de ser o digno pai de uma criança que pudesse vingar, passa então a perseguir, desejoso de um chamativo prêmio em dinheiro, uma escrava fugitiva. Uma mulher grávida lutando para que o seu bebê também pudesse sobreviver.

O resultado da batalha entre "pai branco contra mãe preta" não poderia ser mais atual. De que cor são as crianças que vemos morrer, todos os dias, todas as horas, nas ruas, nos jornais e na televisão?

Esta edição da Cobogó não é uma joia apenas por trazer um texto tão emocionante, primoroso e essencial, mas também por causa de três nomes: a artista Márcia Falcão, que ilustra lindamente a edição; a escritora e doutora em ciência da informação Bianca Santana e o diretor de teatro e professor José Fernando Peixoto de Azevedo.

Pinturas de Márcia Falcão ilustram edição do conto 'Pai Contra Mãe', de Machado de Assis, que sai pela Cobogó - Divulgação

Tive a sorte de, recentemente, assistir a uma apresentação do José Fernando na Sociedade Brasileira de Psicanálise e nunca mais esqueci suas falas. Arrisco dizer, ainda que diante do maior autor de todos os tempos, que as teses expostas ao final de "Pai contra Mãe" são tão comoventes e fundamentais quanto este texto de Machado de Assis.

Para Bianca, "no Brasil de 2022, quando leio pela primeira vez este conto, o direito legal ao aborto vem sendo atacado pela extrema direita. A mesma que defende a esterilização de mulheres negras e pobres, a mesma que nem sequer menciona o assassinato de 103 crianças no Rio de Janeiro, entre 2017 e 2021, sendo elas 90% negras".

Para José Fernando, "a invisibilidade não é o nome de uma ausência —quase sempre, pelo contrário, o invisível é da ordem do excesso, a invisibilidade é um modo de ver..." E ainda: "Numa sociedade escravocrata, corpos escravizáveis são também corpos subordinados a uma teatralidade do terror, forjada segundo protocolos de naturalização".

Pai contra mãe

  • Preço R$ 62 (72 págs.)
  • Autoria Machado de Assis
  • Editora Cobogó

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