Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

Quando Annie Ernaux amou um jovem 30 anos mais novo

Ao andar pelas ruas com seu parceiro jovem e constatar tantos olhares sobressaltados e indignados, autora conclui que não sentia um pingo de vergonha

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Enquanto escrevo esta resenha, a escritora francesa Annie Ernaux, ganhadora do último Nobel de Literatura e atração principal da Flip deste ano, já deve estar chegando ao aeroporto de Guarulhos, de volta ao seu país. Não estive em Paraty, mas as informações que chegam, vindas de amigos escritores e jornalistas, é que para além da comoção causada por seus já celebradíssimos livros e falas durante a feira, também se destacaram imensamente a generosidade e a simplicidade da autora.

Annie não se importou em dividir mesa com outros autores, autografou centenas de livros (foi a mais vendida do evento) e ainda, aos 82 anos de idade, topou posar pra uma infinidade de fotos (mesmo não gostando, confidência que ela fez para pessoas próximas).

A escritora francesa Annie Ernaux, Nobel de Literatura, durante mesa de debate na Casa Folha na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) - Zanone Fraissat - 27.nov.22/Folhapress

Assim, com tamanha disponibilidade, ela também escreve. Toda a sua complexidade, sensibilidade e erudição estão entregues a quem quiser. Em uma bandeja simples, apesar de espelhada. Ela está ali, na sua frente, uma Nobel de Literatura, lhe oferecendo a lealdade pela transparência e, corajosa, livre e gigante, o mais bonito que um escritor tem para dar: narrar-se para existir, e não para cometer meros exercícios de estilo.

Estive com ela em um jantar no domingo (27) à noite. Ensaiei três perguntas em francês (levei até uma colinha). Decidi que faria apenas uma delas: "Os homens têm medo de você?" Mas eu mesma fiquei apavorada e não consegui dizer uma única palavra para esta que é, hoje, ao lado de Marguerite Duras e Édouard Louis, a minha autora "autosociobiográfica" preferida.

Ao falar de si, Annie escreve sobre relações familiares e de classe e sobre o contexto social e político da década referida em cada obra. É comum, em uma frase simples, curta e direta, que ela nos conte algo aparentemente banal sobre o seu humor do dia, e a partir dessa construção o leitor se sinta saciado a ponto de ter um panorama bem amplo do que se pensava, na França daquele ano (quiçá no mundo todo), sobre feminismo, amizade, amor, política, maternidade, envelhecimento e prazer.

Neste brevíssimo livro "O jovem" (li em menos de uma hora), Annie narra sua relação, aos 54 anos, com um "ardente e devotado" estudante, 30 anos mais novo, que morava em um apartamento minúsculo, gélido e desconfortável: "Muitas vezes fiz amor para me obrigar a escrever. Queria encontrar, na sensação de cansaço e desamparo de depois, motivos para não esperar mais nada da vida. Nutria a esperança de que, ao fim da espera mais violenta de todas, a de um orgasmo, eu pudesse ter certeza de que não havia orgasmo mais intenso que a escrita de um livro."

Tanto iniciantes quanto iniciados na obra de Ernaux devem, provavelmente, se perguntar como é possível que um escritor possa fazer caber absolutamente tudo o que realmente importa (desejo e morte) em uma história tão concisa e transitiva. Notamos, sem esforço, que estamos diante de uma joia raríssima: "Tinha a sensação de nunca ter me levantado de uma cama, a mesma desde os meus dezoito anos, mas em lugares diferentes, com homens diferentes e indiscerníveis entre si". Algo imenso e lento, apesar das vertiginosas 56 páginas. E também perturbador, apesar de parecer que a autora está diante de você, em um café, lhe propiciando informações leves e corriqueiras, enquanto vocês esperam a chegada de alguém com uma notícia importante.

Observando os gestos e reflexos do namorado, "condicionados por uma falta de dinheiro contínua e herdada", a autora assume que jamais teria se relacionado com ele em sua juventude: "Não queria identificar num rapaz as marcas da minha origem humilde". E que somente agora via a beleza de estar ao lado de alguém com quem podia "voltar a representar a peça da sua juventude", e que era "o portador da memória do seu mundo de origem".

Ao andar pelas ruas com seu parceiro e constatar tantos olhares sobressaltados e indignados (frutos de um machismo que, em situação oposta, celebraria um homem mais velho com uma garota), Annie Ernaux conclui que não sentia um pingo de vergonha, e sim um enorme sentimento de vitória.

Annie belíssima descendo escadas, deslumbrante andando na praia e, por fim, a sombra de um casal, de mãos dadas, desenhada sobre o mar. São fotos selecionadas pela autora, da exata época em que viveu o romance narrado no livro. Para mim, e imagino que para outros nerds da literatura, encarar essas imagens, ao final do livro, equivale a uma experiência lisérgica.

O jovem

  • Preço R$ 39,90 (56 págs.)
  • Autoria Annie Ernaux
  • Editora Fósforo

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.