Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu União Europeia

Yasmina Reza traz seu olhar sensível e irônico sobre a burguesia francesa

E eu ouso dizer, sobre a elite pretensamente culta e refinada de qualquer país

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A primeira vez que entrei em contato com o texto da francesa Yasmina Reza foi na adolescência, assistindo a uma montagem bem amadora da sua peça mais conhecida no Brasil: "O Deus da Carnificina". Em resumo, para quem não conhece o conteúdo da obra, é sobre o encontro tragicômico, psiquicamente descompensado e recheado de agressões verbais entre dois casais que precisam decidir o que fazer a respeito da violência física ocorrida numa briga entre seus filhos pré-adolescentes.

Eu ainda não tinha vivido o suficiente para ficar maravilhada com aqueles diálogos e encantada pela crítica precisa e genial por detrás deles. Era um olhar muito sensível e irônico sobre a burguesia francesa e, ouso dizer, sobre a elite pretensamente culta e refinada de qualquer país.

Como não tinha estofo existencial para entender Yasmina Reza, o que senti na época foi incômodo e angústia e cheguei até a culpar a falta de experiência dos artistas.

A autora francesa Yasmina Reza - Gabriel Bouys - 2.set.01/AFP

Há dez anos, vi a adaptação que Roman Polanski fez de "O Deus da Carnificina" para o cinema e pude então me apaixonar de vez por seu texto. Para esta coluna, já resenhei o livro.

Não sou nenhuma especialista na autora. Li apenas "Carnage" e agora este "Felizes os Felizes", título que, imagino eu, ironiza o sermão da montanha do Evangelho Segundo São Mateus. Mas posso dizer que aguardo ansiosamente que a charmosa editora Âiyné (podia só custar mais baratinho, reclama o pessoal das minhas redes sociais) traduza a obra completa da dramaturga.

Em "Felizes os Felizes", todo mundo está entediado, irritado, deprimido, chateado, enciumado, solitário, psicótico, enlutado e sem tesão, mas nem por isso todos esses aprisionamentos em cotidianos (que foram, estranhamente, um dia sonhados por todos) dariam um filme de terror. São vidas normais (vidas brancas normais), e o resumo da ópera é que nenhum neurótico –e nem precisa ser dos mais persecutórios pela própria inteligência– jamais será de fato muito alegre. Isso é lugar-comum. O que não é comum é o talento de Reza para criar e intrincar esses personagens e ainda arrancar gargalhadas quando nos reconhecemos nos piores momentos de cada personalidade infantil, tóxica, fútil ou perversa.

Os contos, intitulados por nomes próprios, funcionam de forma brilhante quando lidos isoladamente. São pessoas que conhecemos e das quais, sem nem saber, estávamos ávidos para poder falar mal, rir, fofocar. Na verdade, estamos rindo de nós mesmos –e isso pode até machucar, mas é também um tremendo alívio.

Somados, os contos organizam, ainda que de forma caótica, um romance espetacular, em que nenhuma ponta da narrativa está perfeitamente colada, finalizada, explicada. E é isso o aproxima tanto da experiência humana.

A história de Robert –um marido entediadíssimo que empurra um carrinho no supermercado, deprimido pelas incontáveis embalagens idênticas no corredor de azeite, e quer morrer quando sua mulher, Odile, volta para a fila dos queijos– poderia acabar ali e já seria uma das melhores coisas que li nos últimos anos. Mas na sequência vem o conto narrado pela esposa, que discorre sobre como é impossível sair com Robert sem que as coisas degringolem. Os dois vão a festas, se despedem das pessoas com gargalhadas e brincadeiras, mas "uma vez no elevador a frieza se instala imediatamente". Ela avalia que um dia seria necessário estudar o silêncio específico do carro logo que um casal sai de uma festa animada e volta para casa. Impossível não se reconhecer em ambos os lados desse casal.

Da criança possuída por Céline Dion até a senhorinha com câncer flertando na sala de espera de um consultório médico; passando pelo marido compulsivo por jogos que engole um rei de paus e pela mulher que antes se via protegida pelo casamento como "uma cápsula por onde se olha o mundo", mas sofre por uma paixonite não correspondida e planeja pedir ajuda ao pai para não terminar a vida como uma idosa "animada, elegante e de cabelos grisalhos curtinhos", o leitor dessa obra-prima não tem para onde correr.

Em alguma página Yasmina Reza vai dissecar seus medos, seus vazios, sua rotina comezinha e sua incapacidade de se sentir minimamente realizado.

Felizes os felizes

  • Preço 72,90
  • Autoria Yasmina Reza
  • Editora Âyiné
  • Tradução Mariana Delfini
  • Páginas 230

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