Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Medo avião, modo avião

Mudei uma vogal e minha vida mudou

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Uma vez perguntei ao saudoso Contardo Calligaris o que eu poderia fazer para voar melhor. Não queria mais usar Rivotril, mas ficava petrificada na fila de embarque do aeroporto.

Ele disse que eu precisava de uma recompensa, um prazer, um mimo, algo que eu amasse demais e que fosse, de certa forma, uma espécie de "pecadinho" ao qual eu me permitiria naquelas terríveis horas de negociação com minha neurose. Entendi que tinha de burlar meu cérebro, bugar o sistema. Enfiar um gozo proibido no lugar de uma tarefa indigesta. Contardo disse que se eu estivesse de regime, por exemplo, valeria levar o mais prazeroso e calórico dos chocolates.

Nunca tive fome em momentos de pânico, muito menos por doces. Dos pecados de que realmente gosto, boa parte envolve crimes contra a decência pública ou sujeitos barrados (pela moral, pela igreja, pela lei, pelo inconsciente, pela falta, pelo desejo, por ele mesmo, pela licença poética, pelo alívio cômico, pela mais completa falta de noção do que é um sujeito barrado). De toda forma, nada disso caberia na bagagem de mão.

Avião levantando voo no aeroporto de Congonhas
Nas últimas semanas, viajei algumas vezes de avião, e algo estranhíssimo aconteceu: senti zero medo - Bruno Santos - 17.ago.23/Folhapress

Também gosto da sensação de transgressão e perversão que é torrar todo o meu dinheiro especificamente quando não tenho nenhum. Certa feita, nervosa para embarcar em uma ponte aérea no exato dia em que fui demitida da Globo, entrei numa HStern e me dei um anel tão espalhafatoso que depois, envergonhada em exibi-lo, o troquei por seis pequenas joias (que uma pessoa em estado normal poderia comprar; jamais de uma única vez).

Uma época da vida, eu descobri uma loja no Rio de Janeiro chamada Dona Coisa e sempre combinava comigo que, se eu conseguisse chegar ao Jardim Botânico sem embeber minhas sinapses em clonazepam, eu iria até lá e me daria um regalinho. Eu revirava a loja inteira em busca de qualquer coisa que custasse menos que meu salário e não achava nada. Estava somando medo de avião com medo de ser ridícula e parei com o pecado relacionado a gastos. Não estava dando certo.

Nas últimas semanas, viajei algumas vezes de avião, e algo estranhíssimo aconteceu: senti zero medo. Fazia pelo menos 20 anos que eu não viajava tão despreocupada e relaxada. Aliás, fazia no mínimo dez anos que só viajava com a ajuda de algum calmante. Dormi como as crianças dormem, com aquele pescoço completamente solto, a boca com uma baba seca no canto. Um amigo me pediu um pouco do que eu tinha tomado. Mas era nada. Zero. Teve bastante turbulência, alerta laranja de tempestade, e eu adorei, porque as tremidas me deram uma sensação gostosinha de parque de diversões. Parecia que eu tinha deixado minha mente em casa e viajado no corpo de uma surfista. Estava na maior paz que já senti na vida.

Algumas teorias foram levantadas. Minha análise é incrível? Ser mãe muda o foco da preocupação? Estou tão exausta que não sobra energia no meu corpo nem para ficar estressada? Pode ser um somatório disso tudo. Mas tem uma coisa diferente que fiz antes de sair de casa. E tem a ver com prazer, mas ainda não achei a conexão com o pecadinho (o pecadinho pra um superego carrasco talvez seja justamente um prazer sem pecadinhos?). Em vez de lotar um nécessaire de remédios ou encher a carteira de imagens e medalhinhas de santinhos, resolvi baixar no Spotify (para ouvir no modo avião) vários podcasts que estava querendo escutar fazia um tempão, mas não sobrava tempo.

Do 451 MHz, escutei os dois episódios com áudios restaurados da entrevista que Clarice Lispector deu para o MIS em 1976. A qualidade ficou tão boa que dá quase pra "ver" Clarice fumando, tomando café, mexendo nos cabelos. Do Vibes em Análise ouvi os episódios sobre fofoca, paixões bloqueadas e inteligência artificial. E finalmente escutei Conceição Evaristo falando sobre suas escrevivências no Mano a Mano. Acho que começo a entender quando Lacan diz que o inconsciente é estruturado como linguagem. Em vez de pensar em "MEDO de avião" eu pensei em "MODO avião". Mudei uma vogal e minha vida mudou.

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