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Luisa Mafei é culinarista e professora de cozinha a base de vegetais

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A pata da Rita Lee e a galinha da minha avó

Amarelinha era quase da família e não devia ter acabado na panela

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A galinha da minha avó tinha penas douradas, crista vermelha e comportamento tímido. Dividia a casa com cinco humanos, que a adotaram quando ainda cabia na palma da mão da criança mais velha da família, meu pai.

Respondia pelo nome de Amarelinha, apesar de viver suja de terra, graças ao hobby de se roçar na horta em pleno sol do meio-dia.

Filipa, a galinha da família Prazeiroso
Paulo Belote/TVGlobo

Ninguém se lembra de onde foi que a Amarelinha surgiu, é como se sempre tivesse existido, meio pet de estimação, meio irmã mais nova. Muito pouco galinha. Já a pata da Rita Lee veio da feira, comprada pela mãe e dada de presente à Virgínia Lee, a irmã do meio.

Batizada de Débora, a pata, também amarela, era a "coisinha mais fofa da casa", conforme Rita Lee descreve em sua autobiografia ("Rita Lee, uma Autobiografia", Editora Globo). Débora foi paparicada como uma filha única, e cresceu a olhos vistos em meio a um harém de seis mulheres, para usar uma expressão da cantora.

Rita é a roqueira, mas foi a minha avó quem teve uma vida bastante, digamos, hardcore.

Garantir o pão nem sempre foi tarefa fácil, e chegou uma hora em que a fome apertou. Criar e matar frangos e galinhas para consumo próprio era absolutamente corriqueiro naquela época, mesmo nas zonas urbanas.

Mas a Amarelinha não era para ter acabado na panela. Era quase da família. Uma cadela que ciscava.

A pata Débora foi assada num domingo de Páscoa. Morta e preparada por Charles Lee, o pai, enquanto as seis mulheres assistiam à missa, longe de casa.

Rita conta que o harém gritou e se levantou quando o pai colocou sobre a mesa a pata "depenada e tostadinha numa fôrma cercada de batatas, maçãs e farofa", e completa: "O carrasco comeu sozinho a sua vítima".

Eu imagino a situação da minha avó ao dar cabo da Amarelinha. Ela tentou disfarçar o assassinato, pendurando a galinha sobre uma cerca. Meu pai conta que seus oito anos de idade foram suficientes para não acreditar que aquilo havia sido um acidente, cujo voo malsucedido teria culminado numa Amarelinha fatalmente enroscada nos arames.

Também na casa da família Lee ninguém acreditou que a pata Débora havia sido atacada pelos gatos que habitavam o porão.

Silêncio total à mesa. Todos se serviram de repolho cozido, arroz e feijão. A Amarelinha permaneceu intocada, e meu pai não sabe dizer o que fizeram com os restos mortais, mas suponho que tenham ido parar na casa de algum vizinho, ou no lixo.

Liguei para a minha avó para ouvir a sua versão sobre a Amarelinha: "nunca existiu". Confessou que criava e matava galinhas, sim, mas que a Amarelinha era apenas uma galinha de plástico, com a barriga recheada de ovos que caíam com um belo apertão.

Talvez a Amarelinha seja apenas uma Galinha Ex Machina, pendurada na memória do meu pai para relativizar o fato de ele comer carne a despeito de amar os animais.

Ou vai ver que a culpa da minha avó ao depenar a Amarelinha apesar da fome foi tão grande que ela apagou esse fato da história, eternizando o ente querido num brinquedo de borracha.

Se o meu pai convivesse com cada galinha que acaba na sua panela até hoje —uma galinha sem nome, sem rosto, já irreconhecível, desmembrada e comprada em bandejas de isopor com plástico— sua galinhada seria uma "galinada" feita apenas de arroz, ervilha, milho e molho de tomate.

Quem sabe com a jaca verde desfiada no lugar da Amarelinha que ele tanto amou, ou que nunca conheceu.

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