Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Não basta lamentar mortes

Quem ordena ou coopera para morte de civis é legalmente responsável por elas

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É preciso dar-lhes nome e rosto, e não apenas número. 

Dyogo Costa Xavier de Brito (16 anos), Gabriel Pereira Alves (18), Lucas Monteiro dos Santos Costa, seu amigo Tiago Freitas (21), Henrico de Jesus Viegas de Menezes Júnior (19), e Margareth Teixeira (17). Seis jovens mortos em cinco dias no Rio de Janeiro em operações policiais. Dyogo havia postado em uma rede social há menos de um mês: “Que a bondade dentro de mim seja sempre maior que toda maldade ao meu redor". Bebê de um ano e meio foi baleado. 

Lamentamos profundamente essas e as futuras mortes que venham a ocorrer, disse o Secretário de Governo do RJ, Cleiton Rodrigues. Repito, caso o absurdo tenha passado despercebido: lamentaram-se mortes futuras.

Chega um momento em que precisamos mudar radicalmente os termos com os quais falamos sobre violência estatal. 

1.500 cartas com desenhos de crianças moradoras do Complexo da Maré (RJ) foram enviadas para o Tribunal de Justiça do RJ relatando o uso de helicópteros da polícia para atirar nas comunidades. “Eu queria que parassem as operações porque muitas famílias serão mortas,” dizia uma das cartas. Em nota oficial, o Tribunal de Justiça respondeu que as cartas "foram recebidas e geraram um processo administrativo que foi arquivado”. 

1.500 vidas administrativamente arquivadas em duas vias carimbadas.

Há de se substituir o lamento insincero do Estado diante de tais mortes pela responsabilização de seus agentes superiores e políticos que ordenaram ou cooperam para que estas mortes ocorressem.

Princípios da ONU sobre uso da força preveem que “oficiais superiores sejam responsabilizados caso tenham ou devam ter tido conhecimento de que responsáveis pela aplicação da lei sob seu comando estão, ou tenham estado recorrendo ao uso ilegítimo da força e armas de fogo, e caso os referidos oficiais não tenham tomado todas as providências ao seu alcance a fim de impedir, reprimir ou comunicar tal uso” (Princípio 24). Segundo relatório da Anistia Internacional, tal princípio de responsabilização de superiores é endossado pelas autoridades policiais do Reino Unido, Chipre e outras nações europeias.

Não deixe que lhes digam o contrário: nada na lei brasileira impede que superiores e até políticos sejam responsabilizados —civil, administrativa e criminalmente— pela sistemática morte de civis. 

É crime contra humanidade perpetuar ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque. Tribunais internacionais desde o pós-guerra têm reconhecido a responsabilidade de comandantes e políticos neste sentido. 

A lei brasileira faz o Estado responsável por seus atos, inclusive por meio de indenização pecuniária. É ato de improbidade administrativa —passível de suspensão dos direitos políticos por de três a cinco anos— qualquer ação ou omissão de agentes públicos que atente contra princípios da administração pública, como praticar ato visando fim proibido em lei. Matança sistemática de civis por helicóptero certamente é proibida por lei, inclusive pelas normas da própria administração fluminense. 

O TJ-RJ reabriu nesta quinta (14) a ação civil pública sobre operações policias no Complexo da Maré. Veremos se o tribunal e outras cortes no Brasil afora terão a coragem jurídica de chamar atrocidade por seu nome.

Lembro aqui da banalidade do mal de Hannah Arendt. “Nunca matei nenhum ser humano”, disse certa feita Adolf Eichmann, nazista responsável pelo transporte de judeus para os campos de concentração. Banalidade do mal é um sistema que, numa toada só, permite que atrocidades sejam cometidas por pessoas comuns. Permite a criação de sujeitos atrozes que se pensam ordinários. 

Devemos —enquanto sociedade— olhar no espelho e assumir que a morte sistemática de jovens, em sua maioria negros e periféricos, não é acidental. Não é lamentável. Não é resultado apenas de um ímpeto do guarda da esquina. É uma política estatal desenhada na frieza dos gabinetes do poder. 

E como tal deve ser responsabilizada. Não basta lamentar mortes.

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