Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Gabinete de ódio é serpente de mil cabeças: bloquear contas não o destruirá

STF deveria focar as relações financeiras e tecnológicas que sustentam máquina do ódio

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Na mitologia grega, Hidra é um monstro com várias cabeças em formato de cobra, sendo apenas uma delas imortal. Ao serem cortadas, as demais cabeças se regeneram, multiplicando-se, e voltando com mais força. O mito de Hidra captura a essência do ódio online no Brasil atual.

Ao ir ao STF por meio da Advocacia Geral da União em prol do ódio online em uma ADIN juridicamente incabível, Bolsonaro revela ser a cabeça principal de um emaranhado de outras serpentes de ódio. Bloqueá-las, como fez o Ministro Alexandre de Moraes do STF no último dia 24, somente as fará regenerar e multiplicar. Além de relações financeiras pouco evidentes, gabinete do ódio se alimenta de sentimento anti-establishment. Promover tal sentimento, antes de atacar as relações que o sustenta, significa nutri-lo.

Destruir a Hidra requer desidratar a “máquina do ódio” digital, tanto financeira quanto tecnologicamente. “Máquina do Ódio”, aliás, é o título, do excelente livro recém lançado da jornalista Patrícia Campos Mello sobre fake news e violência online. Além da misoginia do ódio online que acomete em especial jornalistas mulheres, Campos Mello expõe a lentidão das instituições de justiça em investigar os laços financeiros das redes de robôs e outras engrenagens do ódio online.

Quanto a estes pontos, a decisão caminha no sentido correto. STF acertou ao determinar, fora o bloqueio de contas, a oitiva dos investigados, afastamento do sigilo bancário e fiscal, e identificação de usuários por trás de perfis anônimos, entre outras medidas. Apesar do inquérito ter base legal turva (deixo este debate de lado), tais medidas são bem-vindas. Tendo em vista que o diagrama de seguidores dos perfis bolsonaristas, anexado pelo STF à decisão, mais parece o PowerPoint do Dallagnol contra Lula, a investigação no inquérito parece ter muitas cabeças ainda a revelar.

Erra, no entanto, o STF quanto ao bloqueio das contas. Aqui não se defende que estas contas não estejam envolvidas no ódio online. O que se defende é que, para controlar conteúdo da liberdade de expressão, juízes precisam arcar com maior ônus argumentativo antes de efetuar um bloqueio prévio (para usar um eufemismo).

Um: bloqueio tende a ser contraproducente. Tal como as cabeças do monstro da mitologia grega, ao se cortar uma das cabeças, outras tantas renascem, ainda com maior força do ódio.

Dados do analista de redes sociais Pedro Barciela divulgados no Twitter no último dia 24 apontou que “a ação judicial gerou uma mobilização entre os bolsonaristas que fez com que passassem de 48% da rede pela manhã para 53% da rede pós bloqueio.” Caso as tendências por ele apontadas se concretizem, “o bloqueio de determinadas lideranças bolsonaristas no Twitter pode: a) criar novas que venham a ocupar o vácuo deixado por esses usuários e; b) aumentar a mobilização bolsonarista”, conclui. Outro pesquisador do tema, David Nemer sustenta que haverá uma “desaceleração do alcance” destes perfis a curto prazo, mas que isto não vai acabar com a desinformação. Pelo contrário.

Dois: decisão é prospectiva e genérica, quando deveria ser retrospectiva e proporcional. Trata-se de uma ordem generalizante – como a de suspensão do WhatsApp no país todo – e voltada ao futuro – como se o STF pudesse prever (ou tivesse o poder constitucional de prever) que todo e qualquer conteúdo futuro destas contas seria ilícito, como escreveu o Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso. Medidas generalizantes de controle de conteúdo negociam liberdade de expressão sem nos dar algo de valioso em troca.

Três: as bases legais da decisão de bloqueio do STF são frágeis. Escreve Min. Alexandre de Moraes ser o bloqueio “necessário para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática.” Que fique claro: estes termos não estão definidos em lugar algum no ordenamento jurídico. E cria-se precedente perigoso: como Francisco Cruz do Internet Lab ressaltou, amanhã um Ministro do STF alinhado ao governo – teremos um terrivelmente alinhado em poucos meses – pode utilizar o mesmo argumento para, por exemplo, derrubar contas críticas ao governo.

Voltemos ao mito: coube ao Héracles (ou Hércoles, na versão romana) destruir o monstro Hidra. Héracles apenas conseguiu fazê-lo quando decidiu estancar rapidamente as feridas de cada serpente cortada para que não surgissem outras, à procura da cabeça principal. Tal qual Hidra, sem desidratar os emaranhados financeiros e tecnológicos do gabinete de ódio, este sobreviverá. Se assim for, quem não sobreviverá será a democracia.

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