Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Racismo e selvageria do Brasil surgiram já na carta do descobrimento

Os privilégios se mantêm como uma casta intocável, e para derrubá-los vai ser preciso voltar às praias nacionais em 1500

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O mundo está vivendo tempos extremamente assustadores.

Depois da pandemia, que resiste a dar seus últimos suspiros, temos pela frente uma guerra fratricida, entre a Rússia e a Ucrânia. Infelizmente, não será a última da face da Terra. O ânimo dos homens —e da própria humanidade— anda sensivelmente bélico, o que nos leva a crer que corações e mentes estão fora de contextos de paz.

No Brasil não é diferente, mas não é de agora que não é diferente. Ódios por diferenças raciais e religiosas pautam a política e a vida do país desde o "achamento", ou seja, o descobrimento. O país nasceu pelo olhar da cobiça —"nessa terra, em se plantando tudo dá", como disse Pero Vaz de Caminha, o escriba da frota de Cabral na famosa carta—, e não é diferente ainda hoje.

Uma das páginas da carta de Pero Vaz de Caminha - Flávio Florido - 20.abr.2000/Folhapress

O atraso mental da nação é algo relevante e histórico. Vivemos, em verdade, sob o estigma de ser uma eterna província, no sentido lato do termo. Isto é, não como um todo, mas parte de coisa anexada a alguma coisa.

O étimo da palavra "província", como "território sob domínio" —acepção que vem dos tempos romanos, nos dá esse entendimento–, vem de "pro", à frente, mais o termo latino "vincere", vencer. Portanto, província ou provinciano, como derivação do termo, pode equivaler-se como território "vencido" ou algo semelhante.

Assim agem e operam as mentalidades brasileiras. Um país que explorou as terras indígenas, desde 1500, de olho apenas em suas preciosidades —no ouro, na prata, nos diamantes, na fartura da natureza, e nos corpos "sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas"—, passando pela escravidão africana, com históricos de 350 anos de comércio de carne negra humana. É um país doente, que não teve tempo de curar-se de suas mazelas nem de penitenciar-se dos seus atrozes pecados.

Nos tempos atuais, a história se repete como tragédia ou como farsa, lembrando Karl Marx. E não relaciono aqui fatos e relatos de raça e classe. Ofensas a negros e negras caíram numa trágica rotina entre nós.

Os relatos nos chegam todos os dias, de diferentes maneiras e matizes. Fazem parte de contextos de prisões injustas, assassinatos por simples suspeições, ataques a trabalhadoras domésticas em portas de edifícios.

Ou ainda ameaças de impedir a continuidade do acesso a universidades públicas por meio de contas, violências a trabalhadores, a crianças, às religiões de matriz africana, ao Judiciário, à política, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho e a uma vida que seja digna e satisfatória.

Os ofendidos estão por toda a parte, assim como aqueles que os ofendem, encobertos pelo grosso manto da impunidade. Para se ter uma ideia sobre a noção de impunidade, nos últimos 30 anos, a contar de 1988 até 2017, apenas 244 processos de racismo e injúria racial tinha sido julgados no Rio de Janeiro, segundo dados do Tribunal de Justiça do estado, em levantamento divulgado pela GloboNews. Desse total, cerca de 40% dos casos foram considerados "improcedentes" e em outros 24%, os réus ganharam o carimbo de "absolvidos".

Lembrar que 1988, além de ser o ano de promulgação da nova Constituição brasileira, foi também a data em que se "comemorou" o centenário da abolição da escravatura, marca que registra o país como o último a ser livrar de tão hediondo mal da face da Terra.

Continuamos a ser um país selvagem e com uma humanidade sob suspeita. Os privilégios se mantêm como uma casta intocável e inviolável, e para derrubá-los vai ser preciso voltar às praias nacionais nos abris de 1500 e pedir desculpas aos povos originários, pela invasão, e, sobretudo, pelas primeiras ofensas praticadas nestas terras.

Além disso, precisamos pensar numa educação integradora —uma educação que forme, não uma elite, mas gente, seres humanos que queiram partilhar duas grandes riquezas que muito nos faltam: conhecimento e afeto.

Tenho plena certeza que todos aqui sabem do que este texto trata. Não é sobre política stricto sensu. A política aqui é sugerida no sentido de "pólis", que tem a ver com Cidade-Estado, sociedade, comunidade, coletividade, sob o gênero de "vida urbana", pública.

A carta de Caminha foi um recado que não soubemos decifrar. Ela encobre algo aterrador, subentendido através da palavra "achamento". Não há nenhuma sã ideia de lei e ordem, de paz e solidariedade. Os termos da comunicação caminhiana são enviesados e tristes, do ponto de vista da linguagem e dos impropérios.

Deixaram por aqui degredados. Deixaram por aqui doenças. Deixaram por aqui o sentido de discórdia, como augúrio de má sorte para a nova nação. Sem falar no compadrio, nos favores sugeridos, como uma marca nacional.

O escrivão Caminha, como bom servidor da coroa portuguesa, sugere pelos bons serviços que prestou a soltura de um genro, um tal de Jorge de Osório, casado com a filha Isabel, conhecido por ser afamado criminoso. Seu delito: "assalto e agressão". Não é preciso se dizer mais nada. Um descalabro.

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