Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Quatro grandes poetas negros atuais, sob a luz da militância e do sentimento

Da feirense Pollyana Sousa ao angolano João Melo, nomes são referências de técnica, estilo e correção linguística

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O que tem na literatura, o que mais nos emociona, é o quanto ela nos surpreende e nos apaixona. A poesia especialmente tem esse dom, o dom de nos provocar um frisson, um arrepio, essa capacidade de, feito uma abelha, colocar mel na ponta de nossa língua, provocando aquela sensação agradável de sentir e perceber.

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A poeta Pollyana Sousa e os autores José Jorge Siqueira, Salgado Maranhão e João Melo - Reprodução e Daniel Marenco/Folhapress

Eu fiquei tocado nesta semana que passou com a leitura de quatro livros de poesia —de três brasileiros, no caso Pollyana Sousa, com seu "Siringe", da editora Reformatório; José Jorge Siqueira, com "Bantoguês, Gramática Sentimento: Poesia e Prosa", da editora LetraCapital; Salgado Maranhão, com "Pedra de Encantaria", da editora 7Letras; e o angolano João Melo, com "Diário do Medo", da editora Urutau.

O que me impressiona nesses autores, antes de mais nada, tem a ver com a diversidade poética deles: praticam uma poesia que dialoga sob diverso contexto, pela natureza da linguagem e a arrojada sintaxe. Tirando João Melo, de Angola, um inquieto viajante entre Luanda, Lisboa e Houston, nos Estados Unidos, todos os demais autores são brasileiros. O que têm em comum é que são negros e engajados no que fazem.

Cada qual traz nos seus livros uma camada de experiência, cingida por anos e anos de prática de escrita e militância poético-literária. A começar pela única autora desse grupo, potente voz feminina, Pollyana Sousa, natural de Feira de Santana, na Bahia, e que estreou em livro com "Siringe", já vencedora —ganhou o primeiro lugar do Prêmio Maraã, de 2020, na categoria autores inéditos.

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A poeta Pollyana Sousa, autora de 'Siringe' - Reprodução/Instagram

Pollyana Sousa é ousada, poeticamente falando. O termo "siringe", do latim "syringe", de onde é mais comum o uso em português, é um achado, uma raridade. Ele, ao mesmo tempo que faz referência ao órgão vocal dos pássaros, encontrado mais nos machos do que nas fêmeas, tem o sentido de flauta, mas feita do colmo da cana, também conhecida como "flauta de Pã", num alinhamento com a mitologia.

O livro de Pollyana é dividido em quatro partes e abre com o poema "Não É Aqui", que tem interface com os tempos vividos: os que desistiram adoentados de morrer vivos/ aos tranquilizados com dose fatal/ aos perseguidos em caça níquel/ às mães baianas de filhos capturados (...)/ com lamento e amparo/ a morte é a maior diáspora".

Toda composição da poeta é linear, mas ela é altissonante em "Sabiá Laranjeira" e "Papa Capim", sobretudo quando diz, em "Descobrimento": "Busquei o que dizem ser poema/ o meu/ sem dizerem que é/ não poesia".

Mas altamente engajada em "São Milhares" —"põe abaixo a assinatura de Isabel/ de que vale letra se há palavra falsa/ estamos soltos, mas não em liberdade/ desprendidos do barro, costelas marcadas/ apagadas a cor com corretivo branco/ coroa de torço sobre pescoço arcado."

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O poeta José José Jorge Siqueira, autor de 'Bantoguês, Gramática Sentimento: Poesia e Prosa' - Reprodução/YouTube

No caso de José Jorge Siqueira, professor e ensaísta, este é seu segundo livro de poesia, que deve, de cara, muito ao primeiro, "Sarapuí – Sorver-te", de 2015. Verdade que "Bantoguês", que fere em sinestesia a tecla militante de Lélia Gonzales, é um livro desigual, mas é cheio de indagações, o que nos faz adentrar suas páginas, divididas em quatro partes —sendo uma dedicada à prosa do autor, nascido carioca "numa vila operária ainda na Pequena África de Heitor dos Prazeres (...), juntinho de onde teria lugar a Escola Municipal Tia Ciata, o Terreirão do Samba, o busto de Zumbi dos Palmares, a avenida do Samba". Nada mais significativo.

José Jorge mantém a rítmica de "Saparuí" nas composições "Quase Partido Alto", "Barroco Mineiro" e especialmente em "Gramática Sentimento" —"Ênclise de mim mesmo/ entre ciosa acentuação de prosódia, a evitar/ silabada e mal-me-quer, e o encontro/ mnemônico que me leva a ti, hiato de minha vida/ pleonasmo de amor incontido/ hipérbato de sentimentos de vãos/ alegoria de minha dor."

Salgado Maranhão, dos agrupados aqui, é o que vem de uma miríade poética com alto grau de busca e profundidade. Este "Pedra de Encantaria" destina-se àquilo que dele disse Ferreira Gullar —não "hesita em ir além da lógica do discurso se o resultado é o impacto vocabular e o inusitado"— ou Jorge Wanderley — "Salgado Maranhão alcança patamares importantes da expressão poética: pelo tom ático, elevado, do mais indiscutível 'sermo nobilis' e também pela notável consciência artesanal da palavra".

O poeta maranhense Salgado Maranhão no Rio de Janeiro - Daniel Marenco/Folhapress

Tendo o Maranhão a correr (e escorrer) no seu sangue, bem crioulo, Salgado tem essa rara capacidade poética de nos fazer sentir e pulsar com ele: "De onde estás — que o medo/ atropela os santos —, o pão/ se come com o verbo./ No abrigo sem tijolos;/ na senzala pós-moderna./ Tudo que tens,/ são palavras inabitadas;/ tudo que vês,/ é o tropel dos dias trívios".

Em outro texto: "Guardam-nos à solidão/ portátil nas vitrines; deixam-nos/ o amor à ração dos cães. Por isso/ canto recolhendo vísceras." Ou ainda neste: "São arbitrárias tuas luas/ em minha boca (e este cerco/ ao rés da espada)./ Tocaram-me com teu hálito/ e a manhã cresceu/ em meus dedos. E no coração:/ esta canção de estilhaços;/ essa igreja a marteladas."

Salgado, o ouvires da palavra, conquistou dois Jabutis, prêmios da Academia Brasileira de Letras e do Pen Clube. Traduzido para oito idiomas, entre o inglês, com três livros, e o sueco, é compositor beletrista, gravado por Elba Ramalho, Alcione, Ney Matogrosso, Zizi Possi, Paulinho da Viola, Selma Reis, Zeca Baleiro, entre muitos outros. Ele concorreu à Academia Brasileira, no pleito com Gilberto Gil, e foi derrotado pelo músico baiano.

João Melo, nosso último poeta analisado do grupo, como já disse, é angolano, com uma vasta experiência na vida política —chegou a ser ministro das Comunicações entre 2017 e 2019— e literária, tendo fundado a União dos Escritores Angolanos, além de ter dirigido jornais e revistas.

Autor de vasta obra poética, "Diário do Medo", escrito pelo português de Portugal, foi gestado em 2020, durante a pandemia. É um livro impactante, transparente e transpirante, mas que sufoca e põe em agonia.

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O poeta angolano João Melo, autor de 'Diário do Medo' - Divulgação

Assim o lemos no poema "Epitáfio": "Aqui jazem/ os condenados da Terra/ os que nunca foram além das fronteiras/ dos bairros escuros e pobres/ onde vivem amontoados/ em todo o planeta: / - Nós."

Também em "Crónica do Medo": "Ontem à noite, quando os homens adormeceram,/ a lua planava, serena,/ sobre o seu dúctil cansaço." Seguem nessa linha os poemas "Onde Foi que Nós Errámos?", "Esses jovens presunçosos e apressados", "Paradoxos ou trocadilhos?", "Certas Balas" e "Carne Negra", dedicado a Elza Soares.

Mas nada se compara a "Crónica Verdadeira da Língua Portuguesa", que abre o livro, este com dedicatória a José Laundino Vieira. Numa das estrofes, diz o poeta: "Estou a vê-la:/ suave e discreta,/ debruçada sobre a varanda do tempo,/ o olhar estendendo-se com o mar/ e a memória,/ deliciando-se comovida/ com o sol despudorado/ ardendo".

Sem dúvida, Pollyana Sousa, José Jorge Siqueira, Salgado Maranhão e João Melo são, atualmente, grandes referências de uma poesia feita com técnica, estilo e correção linguística. Valem, e muito, de nós, o esperado investimento da leitura.

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