"Com a poligamia, com a monogamia ou mesmo solitária, a vida da mulher é sempre dura."
Eu poderia ter começado esta crônica de diversas maneiras, mas penso que este é o norte do romance "Balada de Amor ao Vento" e da trajetória literária de Paulina Chiziane. Este também é tema fundante de "Niketche: Uma História de Poligamia", também publicado no Brasil, sempre pelo contexto do amor, das magias que envolvem as mulheres africanas e suas violências.
A autora não é só a pioneira da literatura de autoria negra feminina em Moçambique, é também a primeira romancista do país, ao estrear em 1990. Ela costuma dizer que não foi fácil começar a publicar sendo mulher e negra. E tem toda razão, tendo começado como contista, através da imprensa, pelo ano de 1984.
As questões coloniais estão sempre dentro da lógica da escrita de Chiziane, e sempre chamaram atenção e causaram muito desconforto. Por essas razões, deixou de militar politicamente como membro da aguerrida Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que contou com ela desde a juventude. Com seu amadurecimento social como mulher negra e cidadã, ainda mais intelectualizada, logo vieram à tona os conflitos ideológicos com o partido, sobretudo no que diz respeito às políticas relativas de monogamia e poligamia e, frontalmente, a hipocrisia dos seus dirigentes em relação ao posicionamento da mulher na sociedade moçambicana.
Paulina Chiziane é bem conhecida e festejada no Brasil. No ano passado, por exemplo, esteve por aqui por duas vezes –para a Bienal do Livro de São Paulo e para a 2ª Expo Internacional da Consciência Negra, evento da Prefeitura de São Paulo realizado pela Secretaria Municipal de Relações Internacionais.
Como escritora, Chiziane tem sua importância e lugar por ser uma voz praticamente isolada na sua terra natal, ainda mais depois da conquista do Prêmio Camões, em 2021, dando a ela o merecido título de primeira mulher africana a ser distinguida com tal premiação, patrocinada por Portugal e Brasil, e conferida a escritores lusófonos.
Tanto "Balada de Amor ao Vento" quanto os outros títulos escritos e publicados por Chiziane têm a ver com uma referência da fase pós-independência de Moçambique, após grande disputa pelo poder. É uma fase histórica e importante da trajetória política do país, com fissuras desde o período colonial, descrita enormemente pelo escritor também moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, enfeixadas nas três histórias inseridas no livro "Gungunhana/Ualalpi/As Mulheres do Imperador", que compõe o romance que também circula por aqui.
Mas Chiziane não é só grande por ser mulher negra e africana. Ela traz para a literatura, no campo ficcional, a condição do feminino, as relações conflituosas com o patriarcado e a violenta invisibilidade a que são submetidas, a qual se inscreve em um processo narrativo inovador e revolucionário.
Ao abordar no romance de estreia o sonhador amor de Sarnau por Mwando, perpassado por intercessões de ordem interna determinada pela estrutura do machismo, sob o viés da poligamia –na qual o próprio Mwando está contextualizado–, Chiziane elabora um discurso de reação, de recusa a esse tipo de sistema opressor, e, ao mesmo tempo, lança luzes às bases da emancipação da mulher negra de todo o continente africano.
Sob essa perspectiva, por intermédio de uma voz ancestral e autoral, é que ela se levanta, se impõe como escritora, se bate e rebate, corajosamente, como a mergulhar no abismo da escuridão. Em "Balada de Amor ao Vento", acerta em cheio como romancista e estreante. Seja no primeiro livro, como agora, a voz indignada de Chiziane se faz ouvir em cada frase, com rara dicção, e através dela, é possível escutar uma respiração antes sufocada pelo patriarcalismo literário e cultural que dominou –e que de certa forma ainda domina– o seu país.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.