Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Ofensas racistas violentam negros e amesquinham a nação

Expulsão da passageira de avião é parte do projeto de exclusão do negro

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Em 1912, estudo publicado por João Baptista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional e delegado do Brasil no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres no ano anterior, asseverava a "extinção da raça negra" entre nós no prazo mínimo de um século, ou seja, em 2012.

Junto ao texto do estudo, que ele chama de "relatório", Lacerda divulga os "Diagramas" elaborados por Edgar Roquette Pinto, com base na "constituição antropológica da população do Brasil, organizados segundo as estatísticas oficiais de 1872 e 1890" (um dos nossos primeiros censos), atestando que, pela "constituição etnológica da população do Brasil daqui a 100 anos", não teríamos mais nenhum ser de característica negra no território nacional.

Conforme suas assertivas, embora "vez desaparecida a raça negra do Brasil", o país não poderia deixar de contar com a influência do "atavismo" – esse "esforço ancestral de retrocesso para denunciar através os séculos uma origem longínqua já apagada". Certamente, pelo extermínio, eu acrescento.

E Lacerda assim se justifica: "O abandono, o isolamento, a inação, a incúria a que se entregaram [os negros] após a abolição da escravatura, tem aumentado de mais a mais a sua decadência e estão concorrendo para a sua extinção."

A palestra de Lacerda, chefe da delegação brasileira no evento internacional, foi severamente contraditada por um participante de peso, ninguém menos do que W. E. B. Du Bois, "mestiço cujos grandes méritos científicos foram reconhecidos no Congresso", mas dado seus moldes, "o crítico perde a grave compostura do seu nobre ofício para se tornar um reles e desprezível difamador das criações alheias."

Ferido nos seus brios, Lacerda faz duras críticas ao ativista e pan-africanista afro-americano, quase chegando, se fosse possível, às vias de fato.

Passados mais de um século da participação e publicação do estudo de Lacerda no Congresso Universal das Raças, o enviado brasileiro apenas errou nos seus cálculos: ao contrário do seu curto pensamento, os negros no Brasil –ou seja, pretos e pardos, de acordo com o IBGE– ao invés de sua extinção, representam hoje 56% de toda a população.

Eu recorro a esta centenária memória para dizer do estarrecimento que causa ainda hoje atitudes racistas que vêm surgindo com grande normalidade, sejam elas em vias públicas, quando pessoas, a exemplo da ex-atleta de vôlei Sandra Martins Correia de Sá, que chicoteou o trabalhador Max Ângelo dos Santos, na zona sul do Rio de Janeiro, em uma espécie de pelourinho colonial revivido, ou quando a professora Isabel Oliveira, do Paraná, se viu obrigada a se despir para poder comprar uma simples lata de leite no supermercado Atacadão, unidade comercial sulista do grupo Carrefour.

Na semana que passou, e que já vai tarde, a Gol Linhas Aéreas procedeu da mesma maneira acintosa e racista, ao mesmo tempo misógina, quando mandou expulsar, com o apoio da Polícia Federal, a professora Samantha Vitena Barbosa de um voo da companhia no trecho Salvador / São Paulo, sob a alegação de que a passageira teria se recusado "a despachar mochila" de mão, onde estava seu notebook, e que este fato "obstruía a passagem", trazendo "risco à segurança do voo".

O que há de comum nestas três ocorrências: todas as pessoas ofendidas são negras. Ou seja, o projeto de exclusão (ou extinção) do negro da sociedade brasileira, não é de agora, continua em curso, seguindo os tresloucados ditames contidos no "relatório" do naturalista João Baptista de Lacerda, representante do Brasil no Congresso Universal das Raças.

Precisamos discutir até quando tais crimes, infrações e violações dessa natureza continuarão a ser perpetrados. Além das declarações de testemunhas, imagens feitas por celulares, indicam que a bagagem da professora já estava devidamente acondicionada no bagageiro do avião e ela, acomodada em seu assento, quando foi expulsa, sob protestos, da aeronave.

O que se passa na cabeça de pessoas brancas que habitam esse país? Que arraigado privilégio branco é este, que ainda tanto se sustenta, mesmo passados 135 anos da abolição da escravatura? Quem o permite? Quem advoga a seu favor? Quem aqui o representa?

Em "A Cor do Inconsciente: Significações do Corpo Negro", a psicóloga Isildinha Nogueira, uma pioneira na abordagem psicanalítica da dimensão sociocultural do negro na sociedade brasileira a partir do corpo, confirma tais agressões sustentando que o negro, preso às malhas da cultura, "trava uma luta infinita na tentativa de se configurar como indivíduo no reconhecimento de um ‘nós’". Nesta tese, Isildinha "expõe as raízes do racismo entranhado e que, apequenando os indivíduos que o sofrem, amesquinha os que o exercem –e envenena o país."

Penso que uma segunda abolição se faz necessária, mas agora com uma Isabel negra e de cabelo crespo.

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