Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias
Descrição de chapéu África

Festival Kizomba pautou temas afroculturais e tocou a comunidade negra

Evento da diáspora celebrou o melhor da africanidade em música e gastronomia

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Um evento para chamar de seu. Assim podemos nos referir à primeira edição do Festival Kizomba Design Museum, que reuniu o melhor da africanidade na semana que passou aqui na cidade de São Paulo, sob a curadoria do produtor Nástio Mosquito e do escritor angolano Kalaf Epalanga. A ideia, bem gerida, fomentou diálogos sobre a influência da cultura kizomba em diversas comunidades no mundo, e no Brasil, com seus impactos políticos, econômicos e sociais, nos seus múltiplos aspectos e abrangência. Ou seja, kizomba como produção do pensamento e sua identidade, com foco em valores como identidade e fé.

O festival ocorreu em três pontos icônicos paulistanos: a livraria Megafauna, onde foram realizados bate-papos inéditos sobre a influência da cultura kizomba, com personalidades da música, artes visuais e literatura, com destaque também para a gastronomia, do chá de kaxinde ao mata-bicho, principal iguaria da culinária angolana, infelizmente pouco conhecida por aqui; a varanda e galeria Pivô, na base térrea do histórico edifício Copan, que se dedicou a exposições, modas e performances afetivas, local também de realização de uma oficina para se aprender a dançar o semba, sob o comando do Coletivo Kizomba Yetu; e, por último, as apresentações na acolhedora Casa de Francisca, com os músicos cabo-verdianos Dino d’Santiago, Djodje e Kady, o angolano Paulo Flores, os brasileiros Roberto Barreto e Russo, membros da BaianaSystem, evento arrematado pelos DJs Branko, Indi Mateta, João Reis e Joss Dee, tudo com muito gingado e remelexo.

Para uma cidade com múltiplas atividades culturais, marcada por grandes eventos todos os dias, a "semana africana" vai deixar saudades para paulistanos e afins.

O músico angolano Paulo Flores
O músico angolano Paulo Flores - Kizomba Design Museum/Divulgação

Mesmo para nós brasileiros, quando se fala de culturas originárias de países de língua portuguesa do continente africano, a grande dificuldade é identificar sua territorialidade, ou seja, sua origem, sobretudo quando a expressão maior vai além da dança e da gastronomia, essa dupla centralidade que marca a trajetória da diáspora africana no mundo, especialmente em países como o Brasil.

O termo kizomba, que vem do kimbundu, universo etnolinguístico bantu originário de Angola, é, certamente, o que melhor define a marca de pertencimento e ancestralidade, talvez a primeira ruptura com o tradicional colonialismo português local, identificado com a origem e destino de populações historicamente violentadas na sua integridade e cultura pelo domínio estrangeiro, à base da força, que tem a ver com acúmulo de riqueza e poder, referências do mercantilismo ultra-atlântico gerado pela ganância e pelo lucro.

Kizomba –que significa "festa", no sentido de celebração– é o termo mais expressivo entre os utilizados pela comunidade negra, com seu marcador no escravismo brasileiro, passando pelas comunidades de terreiro, na Bahia e no Rio de Janeiro, e nos velhos encontros nas quadras das escolas de samba e de ícones, a exemplo de Tia Ciata e mestre Donga, os nossos griôs dos ritmos.

Isso nos levar a pensar no "Kizomba, Festa da Raça", campeão do Carnaval de 1988 sob a batuta de Martinho da Vila, esse grande embaixador da kizomba em terras brasileiras.

Sou cria dos subúrbios cariocas dos anos de 1960 e lembro, bem menino, de meu pai, Enes, nos fins de semana, no quintal de casa, comungando um bom "pagode" com meus tios e tias, irmãos dele e de minha mãe, Flora.

Ele era fã da música "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, e gostava de cantarolar e modificar a letra, trocando "moro em Jaçanã", por "moro em Realengo" e de "minha mãe não dorme enquanto eu não chegar", para "dona Flora não dorme enquanto eu não chegar".

O que mais me chamava a atenção, naquela confraternidade regada a batidas de limão e comidas pesadas, tipo feijoada e cozido, era realmente a dança –do miudinho aos bailados de pernas, muito cadenciadas, de um tio, que se vangloriava de nunca precisar ter que "chorar damas" para dançar em bailes.

O batuque que empolgava tudo, funcionava como uma espécie de porto seguro da gente preta, retroalimentando suas energias para encarar a dureza do dia seguinte, a segunda-feira, sempre próxima e pouco convidativa às alegrias e festejos.

O Kizomba Design Museum do último final de semana me trouxe o tempero de recordações de minha boa infância.

Foi também uma "festa" reencontrar Dino d’Santiago e Kalaf Epalanga, este com livro novo (que será oportunamente comentado neste espaço), um vivo entendedor das coisas da música angolana, como o kuduro, tratado por ele em seu primeiro trabalho —"Também os Brancos Sabem Dançar", de 2018.

O escritor Nei Lopes, um dos mais importantes pesquisadores da cultura da diáspora africana no Brasil, tendo escrito um dicionário a respeito, no seu glorioso livro "Partido-Alto: Samba de Bamba", fala da importância da canção nesse contexto.

"Na tradição banta e negro-africana em geral, a canção desempenha papel relevante porque o material sonoro com que ela opera tem consequências importantes, tanto no plano cósmico quanto no da atividade cotidiana. O canto, associado ou não à dança, coordena e sustenta os esforços do remador, do caçador, do pastor, de todo aquele que trabalha, enfim. E isso da mesma forma serve para demonstrar a fé do iniciado, os sentimentos de amor e de orgulho pessoal."

Ou seja, desses "folguedos" ou "batuques" dos povos bantu é que originaram os principais traços musicais que nos definem como diáspora africana na América portuguesa, como o samba, o partido-alto, conforme atesta a brilhante definição de Nei Lopes, o nosso mestre-escola do subúrbio de Irajá e arredores, que, melhor do que todos nós, de música negra-africana entende.

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