Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Pessoas consideradas 'casos perdidos' são as que foram demais para o seu quintal

Hoje rememoro a trajetória de uma delas, Malcolm X, cuja vida se assemelhou a de tantos das quebradas

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Em minha quebrada, sempre ouvi falar dos "casos perdidos". Geralmente, eram jovens cuja vida, para ser vivida, precisava juntar os panos com a morte. Amigos, conhecidos, colegas que pareciam, aos olhos do zé-povinho, sem qualquer tipo de salvação —viesse ela da igreja, da família ou da cadeia.

Anderson era caso perdido porque teve de trazer dinheiro para dentro de casa ainda criança e, infelizmente, o real lhe custou caro demais. Foi encontrado esquartejado no porta-malas de um carro.

Larissa era caso perdido porque não aceitava os xingamentos que recebia devido à pele preta retinta, o cabelo não alisado e o "comportamento de moleque”. Vivia na briga, não arregava, levou soco na boca, perdeu dente, misturou a lágrima de raiva com o cuspe na cara. Teve de se mudar, mas não mudou a si —saiu sem pedir nem uma desculpa sequer.

Sidney era caso perdido e ponto. Homossexual, afeminado e se vestia como bem queria. Quando animava a vizinhança com suas falas e simpatia, recebia os mais largos sorrisos e os mais violentos xingamentos. Ao virar as costas, deixava a nuca desprotegida e sentia as pontadas das línguas afiadas. Morreu cedo, aos 30 e poucos anos, mas viveu seu tempo.

Anderson, Larissa e Sidney. Pretos, pobres e, para os outros, casos perdidos. Os mais distantes poderiam vê-los na rua, em dias comuns, e falar “tudo bandido”, como ainda é costume dizer até hoje. Eu, e os que estavam ao lado deles, vimos muito mais. Eles eram muito mais, bem mais, “demais para o seu quintal”. Tiveram os três foi pouco tempo para serem mais.

Quantos casos perdidos temos na história? Vários, mas hoje rememoro um que se assemelhou à vida de tantos outros ditos casos perdidos nas quebradas mundo afora.

Em 19 de maio de 1925 nascia Malcolm Little —sétimo filho de Earl e Louise Little. Uma infância marcada pela falta de dinheiro, racismo assassino e os pulos que teve de dar para sobreviver fariam dele mais um caso perdido.

Sua mãe, Louise, nascida em Granada, foi educada desde cedo pelo sentimento de luta, a começar pela história de seus avós, Jupiter e Mary Jane, nigerianos escravizados que conseguiram a própria liberdade.

Quando se mudou para o Canadá, ela passou a trabalhar como repórter na Unia, a Associação Universal para o Progresso Negro na sigla em inglês, fundada por Marcus Garvey, onde conheceu Earl, e fez da escrita seu ofício. O exemplo dentro de casa, ele, Malcolm Little, teve. Fora dela, entretanto, suas referências não o livraram o racismo selvagem vindo da América branca. Após o assassinato do pai, a violência seria uma constante.

A mãe, viúva, perde as faculdades mentais. Os irmãos seguem cada um seu rumo. A difícil busca por emprego, os salários miseráveis, as condições de trabalho mais miseráveis ainda. A chegada à “cidade”, a grande movimentação, os muitos modos de “ser”, o deslumbre com a vida noturna, ali, acessível, mas com um preço. Como pegar sem pagar? Como fazer dinheiro? O crime?

De Little a “Red”, por conta dos cabelos avermelhados, o jovem que era mais um caso perdido imerge nas drogas, na ostentação, nos roubos, até que é preso. Em cárcere, é isolado do mundo que o vandalizou. Encontra-se com os livros. Faz um pacto com eles: daria sua disciplina e dedicação se lhe rendessem todo o conhecimento possível. Educou-se, indignou-se, viu-se mais preto do que nunca e entendeu muitas das emboscadas que a América branca havia armado para ele e para os seus.

Ali, no local onde a sociedade põe todos os casos perdidos para que assim se mantenham —sempre perdidos—, fez-se a si mesmo Malcolm X. O caminho pelo islã engrossou suas passadas. Quando então se declara Al Hajj Malik Al-Shabazz, vive a plenitude de sua espiritualidade e segue fiel ao seu ideal, herança dos pais, de Nação Preta. Morre, como outros tantos casos perdidos, por ter vivido a contragosto de seus principais inimigos: o racismo, a inveja e o medo dos brancos.

Pode a disciplina nascer do caos? O comprometimento ser fruto do descaso? A tradição se fundar na traição? Sim. Tudo depende do propósito. Quando se encontra motivação capaz de guiar a vida a partir de objetivos maiores do que a própria existência, o ideal passa de sonho à insônia. Não se descansa mais até conseguir aquilo que motiva a gana, a vontade, a luta. Evidentemente que há um preço. O compromisso custa, e quase sempre o valor a se pagar é alto demais.

Vejo minha rua com Larissa, Anderson, Sidney e Malcolm sentados na calçada falando alto, gesticulando, submersos em alguma discussão qualquer que, para eles, é crucial. Quem os vê de longe dirá que são “tudo bandido”, mas para quem está perto, garanto que com o tanto que eles têm a dizer, a fazer, a ensinar, só ficará nítido o quanto se pode aprender com esses achados —não mais casos perdidos.

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