Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

'Porque É Proibido Pisar na Grama', de Jorge Ben Jor, é uma música atemporal

Canção traz pergunta difícil: como ter tempo para fazer as perguntas que nos tirem do poço de necessidades

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"Acordei com uma vontade de saber como eu ia/ E como ia meu mundo." Acordei e já me ando de um lado para o outro, feito sonâmbulo. Depois do rosto lavado, o cansaço ainda persiste pelos cantos marcados dessa cara que bate o ponto sem atraso. Olho no espelho só para conferir se ainda vão me perceber ali. Eu mesmo não vejo nada.

Ainda pesavam as pálpebras enquanto o resto do mundo dormia. Já penso no depois de hoje, preciso me adiantar sempre. Dez minutos no relógio, 20 na lotação, duas horas no trem. Sempre o futuro. Não existe só uma linha do tempo para quem precisa pegar da vermelha à amarela, fazendo baldeação para a azul e a verde —as únicas cores refletidas pela íris do par de oráculos a me guiar. Olho e ainda não vejo nada, mas me percebo.

"Descobri que além de ser um anjo, eu tenho cinco inimigos." Impossível desabafar. A criação fez nos moldes do pai —e do pai do pai. Tinha de aguentar. Algumas palavras são apagadas da boca para não render um tapa.

Depressão, ansiedade, medo. Trabalhar e beber foi, durante décadas, e ainda é, o único ansiolítico disponível no balcão. De amortecimento a amortecimento, o tempo passou e arrastou para as calçadas dos outros. Mal tinha onde cair. "Preciso de uma casa para minha velhice. Porém preciso de dinheiro para fazer investimentos." Muito dinheiro.

Sair às 4h e voltar às 23h não basta. Vender o corpo, a força, a saúde e a alma não quita terreno algum. Se me sobra qualquer resquício de liberdade, esse é o preço. Demandam mais uma vez minha presença na encarcerada história dos ancestrais. Nem mesmo a primeira cuíca que ganhei de pai —que não teve pai— pagaria a diferença. O jeito é investir no investimento dos outros, virar inquilino e esperar pela promessa hipotecada.

Dos anos 1970 aos 2000, só consegui chegar porque firmei comigo mesmo que "preciso às vezes ser durão, pois eu sou muito sentimental, meu amor". Assim lhe confessei um dia, enquanto nos olhávamos deitados, opacos pelo cansaço bom das pequenas mortes que não nos cobravam nada. Não disse, mas quando nos conhecemos, eu só tinha uma certeza: "procuro falar com alguém que precise de alguém para falar também". Algumas palavras não são apagadas da boca para que possam render um beijo.

Músicas são como crônicas. Suas letras rompem com os ponteiros dos relógios e folhinhas de calendário. Põem o ser no lugar do sou e permitem entender o cântico da realidade no tom do cotidiano —rouco, grave, gasto e persistente. Sempre presente.

Quando ouvi "Porque É Proibido Pisar na Grama", ainda descolada de seu disco de origem, enverguei o traço das histórias de meus antepassados, de meu pai e a minha própria e fiz um círculo coerente com nossas inegáveis repetições. A canção de Jorge Ben Jor, que integra "Negro É Lindo", de 1971, uma relíquia do músico direcionada a seu povo, responde às mais complexas perguntas sobre como tantas pessoas, hoje, são cada um dos versos escritos.

Olhar para si, reconhecer seu mundo, ajudar a família, ter onde morar, onde viver e morrer, rever amigos, conversar com quem também quer conversar, visitar o mesmo lugar para ver a quem se ama, torcer pela vitória do time, ter fé, buscar inspiração e carinho para ser compreendido. Um parágrafo parece pouco, mas é neste período em que se fez e ainda se fazem milhares de vidas nesta diáspora em desgraça.

O mais simples anteontem é, também, parte da mais extrema contemporaneidade. Homens e mulheres, que por vezes se afogam em dilemas sem solução, não conseguem ter a si mesmos nem sequer quando colocam seus rostos entre as palmas da mão, acariciando com água as feridas da época. De tão sensíveis e submetidos ao mundo, de tão afetados por ele, só se percebem quando, finalmente, conseguem saber como iam e como iam seus mundos.

Escrevo sobre quem conheço, vi e com quem convivi. Sobre meu pai e meu eu, meus amigos e suas mães que ainda sofrem, seus irmãos que se acidentam, seus companheiros que ainda se procuram num oceano de confusões. É nesta canção de Ben Jor que vive a pergunta difícil: como, em meio a tantas dificuldades, podemos tirar um tempo para fazer indagações que nos resgatem do poço de necessidades a serem atendidas?

Nem toda questão precisa de resposta, mas todos nós precisamos de um tempo para compor nossas questões. "Acordei com uma vontade de saber como eu ia/ E como ia meu mundo." Enquanto eu ia, fui indo. Um dia de cada vez é onde mora a resposta.

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