Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Pandemia nos fundões ressaltou a letalidade das desigualdades sociais

Fora dos holofotes da mídia, a Covid fazia sua própria contagem

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Na passagem de um dia para o outro, que em tempos normais apenas resultaria em rabisco no calendário, tudo mudou. Quando percebi, estava embalando alguns itens de minha mesa de trabalho. De início cheguei a acreditar que não seria algo grave, mas logo na primeira semana entendi que adiante estava o desconhecido na sua forma mais crua: a do medo.

Março de 2020. É declarada como pandemia a proliferação em escala mundial do novo coronavírus, Sars-Cov-2. Por conta das lembranças do que foi a epidemia de H1N1, havia esperança de que logo a situação seria controlada. Não foi. Quando as restrições de horários começaram a ser definidas e o vazio passou a caminhar pelas ruas, a pergunta elementar se espalhou tanto quanto o patógeno. E agora?

Rua do Lazer, em Pirenópolis (GO), vazia na Semana Santa de 2021 devido à Covid - Pedro Ladeira - 1°.abr.21/Folhapress

Para quem vivia na periferia, a pandemia não chegou apenas como um acontecimento a requerer atenção, cuidado e paciência. Dentro do "e agora?" habitavam vizinhas, parede com parede, dúvidas e certezas. Como fazer para ir trabalhar? A condução é sempre cheia. E se perder o emprego de doméstica ou diarista? Perdeu. Médicos? Exaustos e expostos. Onde conseguir máscaras? Não é um acessório comum e o preço irá subir. E a comida? Aplicativos de delivery não atendem os mercadinhos de bairro e os que fazem entrega cobram valor de frete maior que o da compra. E os exames, tratamentos, as doenças que existiam antes da Covid-19? Os postinhos já não aguentavam o fluxo normal de pacientes, agora, se alguém ficar doente, não conseguirá atendimento. Se precisar ir às pressas, corre o risco de pegar o novo vírus.

Rua no Jardim Pantanal, zona leste de São Paulo - Karime Xavier - 11.dez.22/Folhapress

Era o desempregado sem saber como pagar as contas; trabalhador indo para o serviço com medo de adoecer no caminho; o profissional vendo seu currículo não valer nada perante o corte que a empresa faria para não falir; era criança sem aparatos técnicos para estudar virtualmente; doente dentro da casa de dois cômodos que tinha que ser isolado de algum jeito. Ainda que certos canalhas criados na internet dissessem que todas as dificuldades partiam da imposição de um "lockdown" —que aqui nunca ocorreu de forma nacional como em outros países—, sem restrições mínimas mais pessoas teriam morrido. Muito pobre foi empurrado para a bocarra da doença por pressão de patrão. Aparentemente, era mais fácil repor um funcionário morto do que repor o caixa.

Do cenário decadente, um tom grave a mais para o blues sofrido de quem, desde sempre, desafiou a morte para garantir a vida. Em julho de 2020, vira notícia o fato que constatou, após testagem, a infecção de 34% da população do Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo. Número gigantesco para o contexto que carecia de vacinas e informações precisas sobre o coronavírus.

Rua no Jardim Pantanal, zona leste de São Paulo - Karime Xavier - 11.dez.22/Folhapress

Relatos de pessoas que morriam dentro de casa surgiram. Na calada da noite ou no emudecer matinal, a pandemia fora dos holofotes da mídia fazia sua própria contagem. Nas quebradas, ela encontrava uma viela para se infiltrar e ceifar, pois tinha acesso livre pela vulnerabilidade que ali, desde sempre, fez morada. Vimos, daqui do fundão, famílias serem consumidas, enquanto, de longe, negacionistas ideologicamente paranoicos e criminosos zombavam da situação de quem padecia e compunham um espetáculo repulsivo, que tentava conduzir o público ao gran finale roteirizado por neofascistas: a morte em massa da massa. O rebanho não seria levado à imunidade, mas sim ao abate.

Também vimos força sem romantização. Máscaras feitas artesanalmente, coleta e distribuição de alimentos, mercearias de vila fazendo entrega na casa de idosos, o corre cotidiano mantido do jeito que dava, até que a vacina finalmente chegou.

Na passagem de um dia para o outro, que em tempos normais resultaria no levantar cedo para ir trabalhar, vi fila de virar quarteirão para tomar o imunizante. Gente nova, gente mais velha, gente do bairro, gente cotidiana. De início, cheguei a acreditar que não estaria tão cheio, mas, logo na primeira curva de pessoas em linha, entendi que adiante estava o povo pobre na sua forma mais crua: a da persistência.

Fila da vacina contra a Covid em posto de saúde em São Paulo - Rubens Cavallari - 18.jun.21/Folhapress

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