Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos

Um deus do ódio é, na verdade, alguém com medo

Minúsculo desde a inicial, ele se declara onipotente e detentor das verdades

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O deus do ódio se manifesta logo na infância. Começa impondo um jeito de ser e se portar que não condiz com a imatura vida de crianças a absorver nos instantes entre adultos alguma referência de como ser. Ele parece carregar um rancor antigo, algo não resolvido na sua prematura existência.

Esse deus, com a privilegiada capacidade de vislumbrar o porvir, trata a prole —a sua e a de qualquer outra pessoa— como se crescida fosse e do mundo entendesse o bastante para já ser responsável por quem ainda nem é.

Seus ensinamentos são pregados à força. "Descruze as pernas", "não vire a mão assim", "pare de falar ‘ai’", "você chora demais". Em sua onisciência binária —restrita a apenas duas categorias de pensamento— reside o maniqueísmo que lhe confere razão, esta com a qual dita quem será o que e como, mesmo quando a natureza diversa lhe prova o contrário e demonstra que de suas raízes crescem os ramos a trilhar os rumos dos frutos que continuam nascendo, semeando o solo, resistindo às pragas e existindo com o tempo.

"Arrume esse cabelo", "bermuda não, coloque o vestido", "skate não, bola não, boné não, carrinho não". O deus do ódio é também o do não.

Conforme percebe que sua criação lhe escapa às mãos, estica a cinta e solta a fivela. Quando não, esquenta a moleira das crias ao chicotear suas mentes com profecias quentes como o inferno. O deus do ódio destrói corpo e alma enquanto diz para si que o faz pela missão de construir um mundo melhor.

Sabe, este deus, que mundo melhor não há senão aquele no qual a pessoa tem a chance de ser e viver a plenitude de sua identidade que a ninguém prejudica. Sabe, este deus, mas escolhe negar em prol do ódio que lhe confere, por assim dizer, alguma identidade.

Criança triste na escada
Zhivko Minkov na Unsplash

Os que o seguem, muitas vezes não por fé no que diz, mas por medo do que faz, testemunham a seu favor. Por viverem sob seu teto, temem o desabar sobre suas cabeças e se curvam. Dizem "ele é muito velho, por isso não acompanha os novos tempos".

Porém, não deveria ser o deus vivido aquele maduro o suficiente para compreender as existências em todas as suas fases? Não seria ele apto a rever o que de errado existiu no ontem para aperfeiçoar o hoje? Seria se não fosse ele o deus do ódio, cuja essência parece depender da destruição do outro. Para o deus do ódio, tudo é fim. Só continua sua vigilância obsessiva, dogmática e violenta.

Eis que o deus do ódio Deus não é, pelo menos não aquele em que muitos acreditam. Minúsculo desde a inicial, ele se declara onipotente e detentor das verdades. Guardião da moral. Eleva-se aos céus em âmbar onde sua emurchecida silhueta se projeta maior ao esconder as sombras em suas ideias.

Por vezes diz ser, este deus do ódio que Deus não é, servo do seu povo. Não é apenas um, são muitos que se dizem um, não é apenas homem, é também mulher, não se restringe a uma única fé, professa todas e em todas: não serve. Não serve ao povo diverso que faz da humanidade aquilo que sempre foi —muitas.

O deus do ódio odeia e isso já o encolhe. Coloca-o no lugar da existência simples, dando a ele o presente maior que, para aqueles a cultivar sua religiosidade sem condenar quem dela não compartilha, resume-se à vida comum. O ciclo no qual se nasce, cresce, comunga com os seus e com os demais que passarem pelo seu caminho e deixa para as próximas gerações legado de sua trajetória. Legado esse que proverá mais vida, não morte. Não o fim, mas recomeços.

O deus do ódio crê que seu discurso é sarcástico o bastante para disfarçar a patética retórica dos medíocres —a que finda sempre na desumanização. O deus do ódio é, na verdade, o homem que se faz deus para si mesmo por medo de encarar a ordinária existência.

É a pessoa que odeia e tem orgulho disso. Não serve.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.