Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos
Descrição de chapéu internet

A internet de meus pais parece outra

Aprendo com eles que, no vasto mundo digital, o limite pode ser amplidão

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A senhora, com seus recém-vividos 60 anos, parece habitar outra realidade dentro da outra realidade —aquela conhecida por internet. O senhor que já passou dos 70 também. Ao observá-los cotidianamente, consigo perceber que o casal se limita ao uso simples do que as redes têm a oferecer. Tão simples que me faz questionar: seria limitar o verbo certo?

O acesso ao celular veio tarde. Por questões financeiras e até certo desinteresse, tal aparelho, quando finalmente adquirido pela senhora, parecia não ter muita utilidade senão o uso de mensagens por SMS. Era um modelo sem conexão com a web. Foi depois de adquirir um mais moderno que o impacto no seu cotidiano se tornou visível.

Homem de 79 anos usa celular para jogar - Ronny Santos/Folhapress

Resgatou o contato com familiares incomunicáveis há décadas. Gastou um bom tempo pensando qual foto de perfil usaria no WhatsApp, afinal, iria expor a imagem para quem, pelos efeitos do hiato, não lembrava mais de sua fisionomia. Preferiu, contudo, usar imagens de flores com mensagens positivas.

De imediato, a senhora não ingressou em grupos nem fez questão de conta em redes sociais. As fontes de informação continuavam a ser o telejornal e o filho jornalista. Certo dia, perguntou se tinha como receber as manchetes como notificação. Instalado o devido aplicativo, às vezes gritava pela casa alguma notícia urgente de grandes portais que, para ela, não tinham o carisma de um Jornal Nacional com o "boa noite" do âncora.

Comprou capa protetora com estampa de toalha de mesa e mantém até hoje o hábito de colocar o aparelho deitado de bruços sobre um pano. Todo dia uma descoberta que causava euforia. Expandiu o tamanho do mundo dentro e fora de sua mente, mas com filtros pessoais que me chamaram a atenção.

A senhora, quando usava o celular, buscava um ambiente informativo, mas limpo da toxicidade virtual cada vez mais comum. As músicas de sua época no YouTube, fotos de plantas na galeria de imagens do Google, perfis com vídeos curtos de animais —especialmente gatos— no Instagram que fez sem postar um retrato sequer seu e tudo mais que podia lhe mostrar o mundo possível de escolher o que ver. De certa forma, o que sentir também.

Na sua tela não cabia briga, bochicho, informações falsas em subgrupos de submundos da web ou excesso de opiniões a esmo. Dentro da internet seu tempo e espaço eram outros. Não se rendeu à violência discursiva nem à superexposição de sua vida. Soube, aos poucos, dar atenção àquilo que a desconectava do mundo concreto no qual, por décadas de uma vida toda, fez-lhe viver repetidamente o trabalho doméstico.

Deitada, ilumina com uma luz prateada o rosto e se transforma na própria Lua a contemplar o mundo digital antes de se apagarem ambos, ela e sua realidade menos minguante.

Idos manuseia celular durante curso de smartphone e tecnologia para a terceira idade, no Parque Villa Lobos, em São Paulo - Gustavo Lacerda/Folhapress

E o senhor? Permaneceu analógico enquanto pôde e manteve tudo no seu devido lugar: música nos vinis ou rádio, filmes e jornal na TV, comida na boca de fogão, conversas no boteco de esquina, futebol no CDM (Clube Desportivo Municipal). Até que, aos poucos, vendo sua senhora imergir nas tantas possibilidades que a esfera online trazia, permitiu-se.

Encontrou no YouTube shows ao vivo que não pôde presenciar e passou a cozinhar com o celular cantarolando saudades. É um senhor de voz de trovão, mas que parece suavizar a tempestade quando assovia músicas de artistas de sua época como Branca Di Neve, Jorge Ben Jor e Jovelina Pérola Negra. Entrou em grupos de amigos dos tempos de firma, mas silenciou alguns. Não se importa com existência de redes sociais.

A senhora e o senhor se limitam ao uso da rede para se informar bem e só. Para mim, beira à surrealidade, já que sou obrigado a lidar, em certos casos —por necessidade da profissão—, com toda a negatividade existente no ciberespaço. Os dois, entretanto, limitam-se a serem maiores do que a pequenez da gente chafurdada no ódio.

No país em que 62,1% dos idosos acima de 60 anos utilizam internet, sendo o celular principal equipamento de acesso, aprendo com meus pais que, no vasto mundo digital, o limite pode ser amplidão.

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