Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu

E o bebê já era

Assim como o bebê  muda e se torna criança, também os pais têm que aprender a 'trocar de casca'

Imagem mostra mãe segurando bebê no colo
'Temos medo de perder nosso bebê, mas é fato que todos os bebês são perdidos e é de se esperar que caiam' - Eduardo Anizelli/Folhapress

Estava no shopping com minha filha de um ano e meio e, num piscar de olhos, ela, que deveria sair pela frente da casa do Papai Noel, resolveu voltar na contramão e sair pela entrada, de onde eu já havia me afastado. Percebendo que o aceno na janela tinha acabado, perdi ainda alguns segundos tentando entender onde ela estava. Enfim, em um minuto eu já tinha tocado o terror, gritando o nome dela, rodeada por seguranças e curiosos. Escrevo isso olhando para ela, hoje com 17 anos, placidamente sentada, estudando para o vestibular. Ao lembrar, ainda sinto a aflição daquele momento.

Temos medo de perder nosso bebê, de que seja roubado ou caia e, embora seja um afeto legítimo, é fato que todos os bebês são perdidos e é de se esperar que "caiam". 

É minúsculo o período em que somos bebês –tempo cuja importância é inversamente proporcional à duração– e todos nós, com sorte, ultrapassamos essa fase e o bebê que fomos já era.

Os bebês "caem", pois esse período encerra o suprassumo da fantasia onipotente de que seríamos tudo para os pais (sua majestade, o bebê, dizia Freud) e a queda desse trono imaginário faz parte do já vulgarizado complexo de Édipo. O bebê no colo da mãe e do pai é Deus na Terra, mas basta um irmãozinho e o reconhecimento de que o adulto não o ama exclusivamente, para que uma das fichas mais importantes da constituição subjetiva caia. Não somos tudo para nossos pais e –graças!– eles não serão tudo para nós. O bebê dá lugar à criança, que dá lugar ao adolescente, que dá lugar ao jovem, em seguida ao adulto e ao velho. Essa perda abre um mundo de possibilidades para os filhos. 

Se todos os bebês são perdidos, também o são os pais de bebês, pais de crianças, e assim sucessivamente. A cada transição os pais trocam de casca para tentar acompanhar as novas capacidades e demandas do filho. Sempre um passinho atrás do ocorrido, num susto, no qual se descobre que ele pode isso e pode aquilo, perdeu isso e perdeu aquilo, os pais vão, ora comemorando, ora lamentando, mas, acima de tudo, tendo que aprender toda uma nova gama de posturas para continuar a cumprir sua função. As incumbências da função parental não mudam, mas a forma de exercê-las muda radicalmente. 

No episódio ultracomentado "Arkangel", da série "Black Mirror", vemos uma mãe incapaz de acompanhar as mudanças da filha que comprometem sua chance de exercer sua função. Ela se obstina em controlá-la, por meio de um chip implantado no cérebro da filha –quantos pais não fariam o mesmo?– e acaba por pagar o preço de seu anacronismo. Mais didático e aterrador impossível.

Os pais trocam de casca e dá para imaginar a ansiedade que pode advir da retirada paulatina do time de campo. Como diz uma amiga, "filho é como videogame, a fase seguinte é sempre mais difícil". Mas talvez o difícil não seja a fase em si (não há fase fácil), mas a passagem de um estado conquistado a duras penas para um outro inteiramente desconhecido. 

Mafalda, da tirinha capaz de unir brasileiros e argentinos, inconformada com a autoridade materna, brande: "Ok, sou sua filha, mas se for por questão de títulos, nos diplomamos no mesmo dia". 

Nossos bebês se vão e junto com eles os pais de bebês que fomos --oxalá! Crescemos junto com eles, ainda que a reboque.

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