Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Interceptar 'Chernobyl'

O Brasil ceifa na raiz aquilo que a URSS podava na árvore

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Alguns filmes não conseguem fazer jus à história que buscam retratar e deixam o espectador com a sensação de que a direção apostou excessivamente nos fatos, não se dando ao trabalho de produzir um espetáculo à altura. "Chernobyl" (HBO, 2019) não se enquadra nessa crítica, pois consegue conciliar a magnitude do acontecimento com a qualidade da produção ficcional. 

Trata-se da encenação do maior acidente nuclear já ocorrido, da descoberta de suas causas, da luta gigantesca contra seus efeitos nefastos e da forma como os poderes instituídos puderam ser quase tão terríveis quanto o "acidente".

Talvez o grande segredo do sucesso da série não esteja apenas na qualidade do filme realizado, nem na grandeza da história, mas na facilidade com a qual nos identificamos com os acontecimentos descritos, mesmo que nunca tenhamos pisado naquela parte da antiga União Soviética (atual Ucrânia).

A série apresenta duas lutas simultâneas e igualmente descomunais: impedir os efeitos da radiação nuclear no continente e lutar contra a ignorância, a má-fé e a pequenez humana.

Nada mais oportuno do que a forma como a questão da ciência, da busca pela verdade e do senso de civismo são apresentados na história. Há os sujeitos que, sabendo do risco fatal de suas ações, decidem lutar pelo bem da população e da posteridade enfrentando a radiação voluntariamente. Há os que pelo bem da própria carreira e para não perder seu lugar no organograma do estado agem da forma mais execrável, pondo em risco qualquer forma de vida no continente europeu. Mas o que é a vida de milhões de seres vivos quando comparada a um lugar no partidão? 

O tragicômico é imaginar que o partidão sobreviveria ao efeito da catástrofe. Gorbatchov chega a afirmar posteriormente que o fim da União Soviética foi selado com esse acontecimento.

Ao pensarmos no Brasil, os paralelos são inevitáveis. Se a URSS era famosa pelo incentivo dado às artes, aos esportes e às ciências, o Brasil é famoso pelo oposto: a precarização absoluta das maiores produções humanas. O Brasil ceifa na raiz aquilo que a URSS podava na árvore já grande. 

Lá, embora o investimento fosse imenso, o limite do saber era a ideologia instituída e a excelência artística e esportiva estavam a serviço da propaganda do estado. Quando a crítica ao estado é considerada crime, o bem comum está condenado de saída. 

Não estamos num regime ditatorial, tampouco o jornalismo se encontra tão ameaçado quanto na guerra fria, mas a luta pelo direito à informação e a batalha contra fake news que decidem eleições está longe de acabar. Aqui também a ciência é vista como inimiga do governo. Governo que prefere exterminar cidadãos a rever privilégios, haja vista a busca por ampliação do direito à posse e porte de armas, contrária a todos os estudos sobre aumento de violência.

Temos também o caso das pseudo políticas de combate ao feminicídio calcadas nos piores pressupostos misóginos que, por sua vez, são responsáveis por essa mesma violência, formando um curto-circuito infernal. Há exemplos igualmente estarrecedores de pesquisas sendo substituídas pelo achismo mais vulgar, em cada um dos ministérios. 

Para interceptar os efeitos nefastos da "Tchernóbil brasileira", teremos que apostar no conhecimento científico, na vontade política de alguns poucos e na ação solidária de brasileiros dispostos a sacrificar algo de seu pelo bem comum. A depender de nossos atuais "representantes", o desastre nos liquidará a todos.

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