Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Ódio em família

As violências se perpetuam em nossos silenciamentos e omissões

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É na família que vivemos as primeiras experiências de amor, de ódio e de reconhecimento de quem somos. É nela que serão oferecidas as palavras fundamentais para nomear as experiências subjetivas. Dizer "está com medo, filho?", para uma criança que recua diante de um cachorro, serve para acolhê-la e, ao mesmo tempo, para que ela aprenda que aquela sensação de tremor e frio na barriga se chama medo. 

Há que se confiar no vocabulário apresentado pela família para, mais adiante, reconhecermos suas limitações. Quanto mais psiquicamente comprometida a família, mais fechada para a entrada de discursos que coloquem em xeque sua versão do mundo.

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O ódio, mesmo sendo o afeto que caminha par e passo com o amor, costuma ser negado. "Odeio meu filho" é uma frase desagradável, mas possível. Xingar e socar o filho não. Essa diferenciação faz parte do processo de ter um vocabulário sobre os afetos e de aprender formas civilizadas de lidar com eles.

O problema não é que sintamos ódio, esse é um fato estrutural humano. O problema é quando a violência que decorre desses afetos não pode ser nomeada como tal. Violência é palavra que costuma ser banida do ambiente doméstico, principalmente quando ela é mais necessária.

Quando a criança vive o ato violento (incluindo abuso sexual) como se fosse algo natural ou um ato corriqueiro, estamos diante de uma dupla agressão. Ela poderá ouvir que a mãe que permanece com o marido agressivo o faz por amor, ou que o pai bate por ciúme, pois ama muito a mãe. Ouvirá que ela (a criança) apanha para seu próprio bem ou porque é má. Também poderá ouvir palavras desmoralizantes em tom de humor. 

Como denunciar o ultraje entre risos? Sentindo-se ultrajada e sem reconhecimento, a criança perderá a confiança em sua própria capacidade de nomear o que sente e reproduzirá essa versão distorcida para si mesma e, depois, com seus próprios filhos.

A violência doméstica se perpetua como uma linguagem passada de pais e mães para filhos e só o contato com outras realidades poderá confrontá-la e permitir que adultos e crianças relativizem essas primeiras experiências. É aí que entram a escola, os vizinhos, amigos, religiões tolerantes, a arte e a análise trazendo outras referências e outro vocabulário. 

A violência, que pode ser pensada como o ato daquele que é forte diante de um fraco, esconde a impotência do agressor diante de seus próprios afetos e a necessidade de ter alguém sob seu julgo para se sentir minimamente potente. 

A dita personalidade forte, que grita, "faz e acontece" diz mais respeito ao gênio irascível que esconde suas dificuldades, do que a fortaleza que se imagina. Tampouco o que se submete é frágil, apenas está preso na mesma lógica de ter sido levado a crer que merece aguentar os maus tratos, ainda que por razões insondáveis.

Em uma família onde a violência é naturalizada, o gesto amoroso e a demanda por respeito podem causar estranheza, pois denunciam o que está sendo negado. Respeito, solidariedade, carinho são bem-vindos quando podemos nomear inveja, ódio, medo, desamparo. 

O que chamamos de violência muda de uma época para outra. Basta lembrar que bater na esposa já foi —e em muitos lugares ainda é— visto como uma prática lícita e só recentemente passou a ser nomeada como crime. Embora a penúria social possa potencializar a violência, psicanalistas sabem o quanto ela é corriqueira nas classes altas. As violências se perpetuam em nossos silenciamentos e omissões.

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